A Jornada e o Fim de Evangelion

Paladin Allvo
9 min readAug 17, 2021

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Existem coisas que nós achamos que nunca vão acabar. Mas eventualmente, tudo termina, de um jeito ou de outro. E dependendo de como termina, uma série pode nos marcar para sempre ou nos decepcionar profundamente.

Quando foi anunciado que a parte final de Neon Genesis Evangelion intitulada “Evangelion 3.0 + 1.0: Thrice Upon a Time (“A Esperança” no Brasil)” seria lançada na Amazon Prime Video, eu obviamente fiquei interessado. Minha relação com Evangelion sempre foi boa, e eu logicamente estava ansioso pela conclusão. Porém, quando eu finalmente pude assistir, o que recebi foi um final apoteótico, lindo, empolgante e cheio de significado.

Pela primeira vez em anos, Evangelion me fez sorrir e ficar extremamente empolgado, ao entregar uma produção com um significado belo e esperançoso. E a jornada até “A Esperança” não foi nem um pouco fácil. Entre crises de depressão crônica, falta de orçamento, cartas com ameaças de morte e principalmente anos de espera entre uma produção ou outra, Evangelion mostrou ao mundo todo o porquê de todo o seu sucesso. Muito além de um “anime confuso”, Eva passou por muitos percalços até a sua bela — e tocante — conclusão. Hoje não quero fazer uma review de 3.0+1.0, mas sim fazer uma análise da jornada até aqui, e mostrar a grandiosidade dessa série.

Pré Rebuild: O Sucesso (E Problemas) de Neon Genesis Evangelion

Hideaki Anno começou sua carreira na animação em 1980 em Osaka, local de sua faculdade, a Osaka School of Arts. Apesar de não ter concluído a faculdade por falta de pagamento da matrícula, ele fez alguns trabalhos independentes até eventualmente ser chamado para trabalhar no lendário Ghibli Studio por meio de um amigo.

Seu trabalho em Nausicaä e o País do Vento foi reconhecido pelo próprio Hao Miyazaki, que prezava pelo nível de detalhes de seu traço e o designou para animar o antagonista do filme, o Deus da Guerra. Alguns anos depois, mais precisamente em 1984, ele fundou, junto de seus colegas de faculdade, o estúdio GAINAX, que seria o responsável por não somente Evangelion, mas outros animes de sucesso, como Tengen Toppa Gurren Lagann (cuja staff mais tarde saiu do GAINAX e fundou o TRIGGER Studio).

Apesar de uma carreira aparente consolidada e respeitada, Anno acabou adquirindo uma depressão crônica, fator que infeliz ou felizmente, foi um fator essencial para sua carreira. Foi essa mesma depressão que inspirou Anno a trabalhar em seu próximo projeto, uma série do gênero mecha sobre jovens lutando contra seres aterrorizantes chamados Anjos.

Com diversas referências cristãs (que se têm significado ou foram inseridas somente por escolha estética, cabe ao espectador decidir), Neon Genesis Evangelion trouxe uma pegada completamente diferente à fórmula das séries de robôs gigantes. O protagonista, Shinji Ikari, nunca foi um herói, mas sim um jovem envolvido em uma guerra que não era dele, tirado de sua antiga vida solitária por um pai que, até então, nem ligava para sua existência. A série de 1995 trazia questões psicológicas e sociais que são relevantes até hoje, como a dificuldade de lidar com a solidão, o medo de se relacionar com os outros, a dependência da sociedade da tecnologia, dentre outros.

Apesar de todo o sucesso e a intrigante trama, houve alguns percalços no percurso. O alto orçamento da produção forçou o GAINAX a produzir o último episódio às pressas, mais introspectivo e com menos recursos, porém que terminava com uma mensagem positiva de auto aceitação do protagonista. O polêmico Episódio 24 trouxe uma enorme dor de cabeça a Anno e o estúdio, com direito a cartas ameaçando o diretor de morte. Para o público, não era o “final digno” que eles tanto ansiavam e a audiência se sentiu traída. Eventualmente a audiência insatisfeita teria seu desejo atendido, afinal o filme de recapitulação Death & Rebirth e o “verdadeiro final” foram ambos lançados em 1997, porém, nem sempre as coisas saem do jeito esperado.

Keyart de “The End of Evangelion”, lançado nos cinemas japoneses em 1997.

Para tentar aliviar a fúria dos fãs, Hideaki lançou em 1997 The End of Evangelion, produção essa que só foi possível graças a verba gerada por patrocínios (sério, pelo menos quase um minuto dos créditos iniciais do filme são gastos apresentando os patrocinadores), o que explica o altíssimo nível da animação com uso nulo de computação gráfica, um recurso que não era muito comum antes dos Anos 2000. O que chama atenção porém não foi apenas sua bela animação tradicional, o ponto alto de The End é justamente o clima pessimista e a trama desoladora, que só podem definir um único sentimento: desespero.

The End of Evangelion foi na contramão do episódio 24 e se mostrou um final muito mais tenso e apocalíptico para a série original, além de ser, de certa forma, uma reflexão do próprio criador sobre tudo o que ele tinha passado dois anos antes. Inclusive, existe uma sequência filmada no mundo real, e é lá onde a película praticamente grita “Saiba que isso tudo é culpa sua. Vocês queriam isso, e é isto que ganharam.” Como uma espécie de catarse, o criador de Eva pôs para fora tudo o que ele passou após o final de seu grande projeto. E nos mostrou, na prática, o significado da frase cuidado com o que você deseja.

Rebuild of Evangelion: Recomeço e Redenção

Atenção! Spoilers de toda a série Rebuild of Evangelion à frente. Tenha cuidado, vós que entrais!

Depois de uma década ausente, a série Evangelion — ou franquia, se você preferir — retornou em 2007, agora no novo estúdio de Anno, o khara. Intitulado Evangelion 1.0: You Are (Not) Alone, o filme não era um filme compilatório como Death & Rebirth, mas sim uma atualização da história original, feita no formato longa metragem. Mais tarde essa série de filmes ficaria conhecida como Rebuild of Evangelion, e a proposta era recontar a história do anime original, porém com detalhes novos. Um exemplo é o personagem Kaoru, que é introduzido muito mais cedo na trama, ao contrário da série de 1995 onde ele só é jogado ali sem contexto até ser devidamente explorado em The End. Dois anos depois, foi lançado Evangelion 2.0: You Can (Not) Advance, e aqui já haviam mudanças significativas na trama original, sendo a mais significativa delas um literal Quase Terceiro Impacto, a causa principal do fim apocalíptico de The End of Evangelion.

As coisas realmente mudam em Evangelion 3.0: You Can (Not) Redo. Aqui os Rebuilds ganham seus próprios eventos e traz uma coisa que nunca tinha sido abordada antes: as consequências dos atos de Shinji ao quase causar o Terceiro Impacto, o que trouxe um paralelo interessantíssimo com The End of Evangelion, ao invés do mundo simplesmente ter acabo e toda a humanidade ter se tornado uma consciência coletiva, em Evangelion 3.0, ainda existe uma pequena esperança…e Shinji se sente extremamente culpado. Ele não pode mudar o que já foi feito, ou seja, he cannot redo (ele não pode refazer). O filme acaba em mais um final caótico e intenso, com um quase Quarto Impacto que é impedido a tempo pela WILLE, a organização que se rebelou contra a Nerv.

Então chegamos a Thrice Upon a Time, lançado nove anos depois de You Can (Not) Redo. A conclusão da saga de Hideaki Anno decide dar uma pausa na ação frenética logo de cara e nos apresentar um ritmo mais lento, desenvolvendo o trio principal Shinji, Asuka e Rei. Após tanto tempo lutando contra os Anjos, o grupo de pilotos deve lidar com a pior de suas batalhas: perceber que ficaram estagnados no tempo, enquanto todos seguiram suas vidas. Shinji entra em um estado catatônico, Asuka resolve seus sentimentos complicados e Rei aprende a ser humana e fazer algo além de cumprir ordens. No clímax da história, onde Anno nos apresenta uma contra parte da Unidade 01, a Unidade 013, a resolução dos conflitos se dá por meio do diálogo. O embate final entre pai e filho, entre Shinji e Gendou, vem da maneira mais inesperada e coerente para o espectador, por ser algo impensável na série de 1995. Gendou não pode matar seu filho por ser de grande importância para seu grande plano e Shinji não quer matar o próprio pai, mas sim entender o porquê de todo o caos e tentativas de destruir o mundo.

Por meio do próprio antagonista, entendemos que toda a fonte das ações de Gendou era a sua solidão. Ele ficou tanto tempo sozinho que, ao perder o único amor de sua vida, não pôde voltar a ser alguém solitário. Para Gendou, focar sua vida em tentar trazer Yui de volta e se afastar de seu filho era a coisa certa a se fazer, nem que fosse a última coisa que ele faria na vida. Na cena mais tocante para mim, a imagem do Gendou da série original se abaixa, abraça a imagem de seu filho pequeno e pede desculpas. Um callback para o Evangelion de 1995 e a demonstração do arco entre esses dois personagens enfim, chegando a uma conclusão pacífica entre ambos. No final, Shinji decide dar um fim a todos os Evangelions, a fonte de todo o seu sofrimento, e viver sua vida de forma pacífica e sem os Eva, salvando a si mesmo e o mundo, simbolizando assim que o protagonista, depois de tanto tempo, enfim saiu do ciclo negativo governante de sua vida e achou paz de espírito.

Essa é pra mim uma das cenas mais importantes da história dos animes.

Ou seja, mesmo depois de tudo, Evangelion conseguiu terminar com uma mensagem importante nestes tempos tão difíceis: nenhuma tristeza dura para sempre, nenhuma dor é eterna, e às vezes, precisamos sentar, conversar e nos entender. Porque é por meio do diálogo e dos nossos laços com outras pessoas que conseguimos crescer. O próprio Shinji só abandona sua forma de catorze anos após resolver todas as suas pendências, no espaço metafórico e reafirmar seus laços com as pessoas que ele conheceu até aqui. Desta vez ele não vai voltar no tempo e tentar consertar tudo, mas sim viver a sua vida, aceitando seus erros e acertos ao longo do caminho. É uma forma muito bonita de nos ensinar que mesmo nos piores tempos, precisamos ter forças para continuar seguindo em frente. Tempos melhores virão, crises um dia acabam. E quando tudo isso acabar, você pode se parabenizar por ter chegado tão longe. É uma retomada feita pelo polêmico Episódio 24 do anime de 1995, porém melhor executada (na minha humilde opinião, claro) e bem mais explícita.

E eu escrevi esse trecho todo com os olhos marejados, porque é algo que eu mesmo estou aos poucos aprendendo.

Palavras Finais

Se você leu até aqui, parabéns (vai ganhar outro parabéns se entender a referência). Eu tive certa dificuldade em nomear esse texto, porque a intenção era falar só de Thrice Upon a Time, porém quando vi, tinha falado sobre tudo que eu podia destacar dessa série. Eu senti meus laços com Neon Genesis Evangelion reforçados com o último filme da série, ao ponto de cogitar ver tudo de novo, desde o início. Claro que nem tudo são flores, mas o trabalho em desenvolver os personagens, provavelmente os mais bem escritos em um anime, releva toda e qualquer falha. Eva deixou sua marca no mundo mais uma vez, e se consolidou como algo além de mais uma obra japonesa, mas sim um marco na cultura no geral, e finalmente pôde se despedir em grande estilo.

Vejo vocês na próxima. Adeus, a todos os Evangelions.

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Written by Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.

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