Influência, Liberdade de Expressão e a Arte

Paladin Allvo
10 min readNov 11, 2021

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Esta semana, o meio otaku foi abalado por uma gigantesca discussão acerca de The Rise of The Shield Hero ou Tate no Yuusha, anime do gênero isekai (histórias onde o protagonista é levado a outro mundo) abordado no vídeo “O Anime Que Deveria Ser Crime” do canal Cronosfera. Observando de longe, vê-se um debate divisivo, onde pontos de vista muito diferentes uns dos outros colidem. A questão toda acerca disso trouxe alguns tópicos de grande relevância como liberdade de expressão e artística e a influência de obras fictícias nas pessoas.

Antes de qualquer coisa, eu devo fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, tudo dito aqui se baseia apenas na minha opinião e pensamentos, além de um pouco de pesquisa. Você não é obrigado a concordar comigo e nem tomar nada disso aqui como verdade absoluta.

Segundo, não vou defender ou criticar o vídeo, este não é o tema do texto. Terceiro, esta escrita também não é sobre Tate no Yuusha, até porque não assisti o anime e não tenho interesse na grande maioria dos isekais (eu tenho um problema pessoal com o gênero, salvo as devidas exceções).

Dito isso, vamos falar sobre os principais tópicos que se tornaram o cerne da discussão.

Liberdade de Expressão e Liberdade Artística

Liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais estabelecidos no Art. 5°, IX, da Constituição Federal. Tal inciso estabelece: “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato”. Ou seja, nenhum pessoa será condenada por manifestar suas opiniões, preferências e até posições políticas.

No entanto, com a ascensão da internet no final dos Anos 90 e início dos Anos 2000, o anonimato se tornou uma benção e uma maldição, já que qualquer pessoa com acesso à rede consegue se manter oculto por trás de um nome de usuário. Por conta disso, tornou-se comum ataques de cunho racista, misógino, homofóbico, transfóbico, dentre outros tanto a pessoas famosas quanto anônimas.

E nesse âmbito do anonimato, criou-se uma concepção errônea acerca da liberdade de expressão e direitos fundamentais como um todo: da mesma forma que todos nós temos direitos, estes não são ilimitados e temos deveres dados a nós como cidadãos brasileiros. A liberdade de expressão acaba quando ela ofender direito de outrem. E isso não é opinião, é fato E lei.

Ou seja, não existe “opinião racista”, porque uma opinião é algo formado através do que você pensa sobre um determinado assunto. Já a injúria racial é crime previsto no Código Penal, e o delito é a ofensa máxima aos chamados bens jurídicos tutelados—os interesses comuns que servem de base para as sanções do Código Penal—, neste caso a honra da pessoa em relação a ela mesma, ou a “honra interna” como também é conhecida. Logo, uma ideia estúpida como “opinião racista” jamais pode existir em um país regido por uma Constituição Federal tal qual a nossa.

Quando o assunto é liberdade artística, a coisa entra em uma discussão muito mais complexa. Isso porque diferente da lei a arte é muito mais subjetiva e menos concreta. Com o tempo, aqueles mais investidos acabam buscando as técnicas artísticas para tentar criar as suas próprias obras ou por mero interesse, gerando assim um senso crítico mais forte, porém a experiência artística quase sempre é muito mais pessoal. Duas pessoas podem ter visões completamente diferentes sobre o mesmo filme, desde aqueles considerados clássicos até os que serve como motivo de chacota, por exemplo.

Não é incomum obras de ficção abordem temas pesados ou incômodos, afinal o nosso mundo não é um mar de flores e coisas ruins acontecem na nossa sociedade. O problema é a forma como certas histórias abordam esses mesmos temas. Seja pela falta de uma narrativa bem estruturada ou de senso e tato, algumas temáticas acabam recebendo um tratamento muito aquém do esperado, levando a interpretações dúbias e/ou cenas que não levam a nada além de choque gratuito.

Um exemplo disso é o anime de Goblin Slayer. Se você tirar a cena de violência sexual do primeiro episódio, ainda é perfeitamente compreensível entender o porquê eles (os goblins) são uma ameaça: por serem criaturas cruéis e extremamente sanguinárias. Mesmo com a explicação das criaturas não possuírem fêmeas e por isso capturam mulheres humanas, mostrar o ato explícito e gráfico não tem sentido ou valor algum além de chocar o espectador. Prova disso é a história se tornar uma aventura padrão de fantasia medieval quase inofensiva, regada a sangue e lutas.

E novamente entramos na velha discussão sobre a existência ou não do limite da arte. Afinal, pode-se delimitar o que é certo ou errado em uma obra artística? Temas sensíveis não devem ser abordados? A resposta para esta última é não, desde que feito de uma forma compreensível e coerente. O problema é a primeira pergunta.

Tal qual a liberdade de expressão é delimitada pelos deveres originados da cidadania, a arte pode, por escolha própria, ter ou não relevância social. Muito se fala de representatividade e não é a toa, pois os movimentos sociais das minorias mostram-se cada vez mais fortes, ao passo em que a arte pode também escolher apenas se expressar ou entreter, sem o peso do lado social. Não importa qual a decisão do artista, o mero ato de escolha já denota a parte política (a política segundo Aristóteles, não a política dos poderes Executivo e Legislativo) da produção artística.

Porém, isso dá liberdade a um autor tratar de um assunto sério de forma leviana? Honestamente, não. Da mesma forma que a liberdade de expressão não é ilimitada quando ofende a outrem, a arte quando se volta unicamente para disseminar ideias de ódio, se torna um veículo de discriminação e preconceito. Se não, obras como New Life+: Young Again in Another World, com forte conteúdo xenófobo contra chineses não teria seu anime, light novel e mangá cancelados, ou Minha Luta de Adolf Hitler ainda estaria nas livrarias.

Vale ressaltar o seguinte: não é proibido falar de assuntos mais sérios e pesados na ficção, o problema é quando um tópico mais sensível possui abordagem banal e meramente feita para te chocar, dando a falsa impressão de maturidade, porque no fim, existe uma responsabilidade do autor ou autora ao falar de assuntos assim.

Influência e a Distinção Entre Ficção e Realidade

Outro tópico que surge com bastante frequência é a questão da influência. Geração após geração a televisão brasileira procura um antagonista para ser a má influência das crianças, aquela que vai transformar seus filhos e filhas em rebeldes sem causa. Rock n' roll, quadrinhos, games, anime, Yu-Gi-Oh. Todas eram armadilhas para desviar os jovens do “bom caminho”, seja lá qual for.

Apesar de especialistas desmentirem todos os anos, vez ou outra surge um inimigo invisível prometendo tornar as crianças em adversários de seus pais e todos nós sabemos o quão irreal estas alegações são, especialmente porque na maioria das vezes é só a TV querendo demonizar a tendência do momento (menos para a Record que ficou presa em 2010 e acredita que algum otaku com menos de 18 anos realmente liga ou conhece Death Note). Porém, é viável dizer que a arte, e por consequência o entretenimento, não influenciam seus espectadores? A melhor forma de responder isso, por mais absurdo que isso pareça, é sim E não.

Influência nem sempre é uma coisa negativa. Existem inspirações e impactos positivos, capazes de nos inspirar a ser pessoas melhores, refletir sobre algo, e até mesmo ser a referência de nossos gostos pessoais e na forma de nossa produção artística. Por exemplo: eu adoro RPGs de fantasia medieval com cavaleiros, magia, e deuses próprios daquele mundo porque eu cresci gostando muito de mitologia grega e o Ciclo Arthuriano. O fato de eu gostar da classe paladino provavelmente é a junção da minha paixão por fantasia medieval com os ideais do meu super-herói favorito, o Superman. Além disso, sempre gostei do arquétipo do cavaleiro honrado da justiça, ou seja, desde novo eu preferia muito mais os caras bons do que os vilões.

Uma obra bem executada nos faz ter um envolvimento emocional e serve de inspiração para muitos artistas a criarem suas próprias obras. Mas existe o reverso, ou seja, uma influência negativa? Sim, existe.

Em alguns contextos familiares, os pais preferem terceirizar a educação de suas crianças com outros meios, seja pela falta de tempo ou trabalho em excesso. Por muitas vezes, os filhos têm pouco tempo com seus pais, gerando assim diversos problemas nos menores como a sensação de abandono e distância. Uma mente muito jovem afetada por qualquer tipo de negatividade pode acabar desenvolvendo problemas psicológicos, que, pela falta de comunicação e de tratamento, evoluem para algo pior e muito mais complexo. Estamos a mercê de coisas como ansiedade, depressão, síndrome do pânico, baixa autoestima e fobia social a todo momento, ainda mais em tempos onde a sociedade é interconectada e o acesso à informação é instantâneo.

Mas a influência de uma obra em uma mente ainda em formação existe. Anos atrás, Death Note expressava a rebeldia juvenil de uma geração que começava a entender as nuances do mundo e achava que a única forma de lidar com a criminalidade é matar todo e qualquer criminoso — aqui vai um pequeno spoiler, não, isso não resolve o problema — mas quando crescemos, percebemos a verdadeira natureza de Light Yagami, um sociopata com complexo de grandeza se achando no direito de ser júri e juiz. O que faz dele um ser humano tão melhor ao ponto de declarar a si mesmo um deus? Nada. Porque a partir do momento em que você comete um crime, você se torna autor de um delito. A mentalidade de “só é crime se descobriem” nunca foi e nunca será real.

Em casos como estes, é de suma importância a participação dos pais na vida dos menores de idade, pois eles são os responsáveis por ensinar e delimitar quais conteúdos são apropriados. O argumento de “eu vejo isso e não vou sair por aí fazendo aquilo” não se aplica quando temos crianças na jogada, porque elas são um público extremamente influenciável, tanto para o bem ou para o mal (devo lembrar a vocês que o YouTube foi processado nos EUA justamente por não contar, na época, com uma ferramenta para delimitar conteúdo infantil). Pela mente das crianças ainda estar em formação,os conceitos de certo e errado acabam sendo muito literais e maus exemplos podem criar desvios morais. Porém, nem todo conteúdo infantil é nocivo e por isso uma análise dos responsáveis se faz sempre necessária.

Outro fator essencial na discussão sobre influência é o limite entre a ficção e a realidade. O argumento pronto do “se eu assisto x coisa, eu não vou sair por aí fazendo y” citado anteriormente é eficiente e fácil de replicar porque uma mente saudável e que conhece limites morais sabe de algo óbvio como isso. E quando é o cenário inverso, onde não existe uma mente sadia e sã? A obra também deve ser responsabilizada? Não, por dois fatores cruciais.

O primeiro deles é a existência do sistema de faixa etária. Ele é regulamentado pelos governos de cada país justamente para determinar quais conteúdos são adequados para cada idade, indo de Livre Para Todos os Públicos até Não Recomendado Para Maiores de 18, a mais alta classificação etária no caso do Brasil. O segundo é a delicada questão do indivíduo cuja mente não se encontra em um estado saudável e se sente facilmente influenciado por algo.

Exemplificando: vocês, caros leitores, sabem e entendem que tentar replicar qualquer técnica de assassinato da série de jogos Assassin’s Creed é errado por ser crime, porém nem todas as pessoas têm essa mesma nuance. Por conta de problemas internos graves, alguém pode acabar cometendo um delito influenciado por alguma obra de ficção, mas a obra em si não levou o indivíduo a fazer nada, mas sim a própria pessoa, seja por um crescimento conturbado ou uma instabilidade mental. Exemplos não faltam.

Em suma, a conclusão de todo esse pensamento é: nenhum autor tem obrigação de escrever apenas protagonistas ou personagens moralmente bons ou usar somente o mínimo de violência. Histórias de ficção são feitas justamente sob a perspectiva de serem uma fantasia irreal que jamais poderiam ocorrer.

Porém,apesar de raros—não é a toa que muitos viram caso de notícia—alguns poucos indivíduos podem cometer atos ilícitos, mas nem sempre a ficção tem alguma relação com os casos. E principalmente, deixar crianças e adolescentes mais influenciáveis longe de conteúdos inapropriados, com auxílio dos responsáveis. Narrativas nos envolvem emocionalmente, mas nós precisamos saber quando esse envolvimento é saudável e quando não é.

Conclusão

Finalmente voltamos com um texto aqui no Medium. Sinto muito pela falta de conteúdo, a minha vida pessoal tem andado bem corrida e eu não conseguia encontrar um tema interessante pra falar aqui. Espero que meu ponto tenha sido bem claro, e eu não falei nem sobre o vídeo do Guto e nem sobre o anime de Tate no Yuusha porque meu foco foi falar de outros aspectos em discussão.

Até a próxima! E fiquem bem.

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Written by Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.

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