Jogos Gacha e o Valor do Tempo

Paladin Allvo
12 min readDec 17, 2024

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Após anos jogando esses games, deixei o cenário dos jogos gacha para trás. E explicarei o porquê.

Às vezes a vida nos dá baques muito fortes que nos fazem repensar muitos aspectos. Em janeiro desse ano eu passei por um intenso processo de luto, que mexeu muito com a minha ansiedade, além da imensa dor da perda. Essa pessoa que faleceu era um amigo da época do colégio e embora não nos falássemos todos os dias, sempre marcávamos para assistir algum filme juntos, foi desse jeito que vi todos os filmes do MCU (ele estava presente quando me acabei de chorar na morte de Tony Stark em Vingadores Ultimato). Além disso, ele fez faculdade de Criação de Jogos pela Estácio, tinha preferência pelos consoles da Sony e era muito apaixonado por toda a cultura de videogames, a um nível em que fez disso sua profissão. Embora, infelizmente, nunca pôde colocar sua obra no mundo, por ter partido tão cedo.

Então um baque desses me fez ficar longe de games por literais meses. Olhar para o meu PlayStation 4 quando ele tinha me pedido para adicioná-lo na PSN há apenas alguns meses antes me fazia lembrar da perda. E aos poucos, fui tentando voltar ao hobby mas sempre sem sucesso. Somente agora é que estou conseguindo amar videogames novamente, após terminar o maravilhoso Dordogne.

Nesse tempo afastado, muitas coisas aconteceram. Depois de três anos decidi deixar de jogar Genshin Impact e alguns meses depois, parei de jogar o Honkai: Star Rail. Terminar Dordogne me deu uma sensação ótima, de comprar um jogo e jogar até o final, ao invés de ficar meses parado ao ponto de eu esquecer como se joga. Esse sentimento ótimo me deu também uma epifania: “será que vale mesmo a pena manter esses jogos no meu celular?”. Um tempo depois, desinstalei o Fate/Grand Order após sete anos de jogo.

Porém, não é um texto meu se eu não dividir o assunto em vários tópicos. Vamos por partes.

Histórias Sem Previsão de Acabar

Jogos como serviço são feitos para durarem até onde o serviço durar. A onda constante de atualizações para manter o fluxo de novidades e o boca a boca que isso gera é benéfico para a empresa, afinal, falem bem ou falem mal mas falem de mim, não é? Logicamente que as impressões positivas são melhores para os acionistas, mas um JCS sem público é igual a uma loja sem clientes: sem pessoas, sem renda. E os altos números de rentabilidade que chegam aos milhões fizeram as empresas olharem cada vez mais para esse modelo de negócio e cobiçarem uma fatia desse mercado disputadíssimo. Vide a Sony que fez um investimento milionário em Concord apenas para o jogo dar prejuízo em somente quinze dias após o seu lançamento. A Square Enix teve um fracasso em Foamstars, um clone na cara dura de Splatoon, que além de ser um jogo pago, tinha micro transações. Recentemente a produtora disponibilizou o jogo de graça, para talvez tentar contornar o prejuízo.

Imagem promocional de Concord, um dos maiores fracassos da história dos games e o pior lançamento de 2024.

É inegável que o maior apelo dos jogos como serviço é sua acessibilidade. Você não precisa pagar um valor alto ou uma assinatura para jogar, basta criar uma conta e você já poderá jogar imediatamente. Para quem não pode ter acesso a jogos “premium” (ou simplesmente não tem um PC potente que rode os lançamentos e pode piratear), jogos gratuitos podem ser uma boa alternativa para quem quer jogar. Jogos como League of Legends e Genshin Impact ficaram super populares por não exigirem um valor fixo ou assinatura, visto que a monetização deles vem por outras fontes.

Contudo, como esses jogos precisam viver o maior tempo possível, boa parte do conteúdo desses jogos é dividido em temporadas ou eventos. Nos jogos gacha asiáticos, normalmente durante o lançamento da história principal, muitas atualizações são abarrotadas de eventos de tempo limitado, geralmente com temas sazonais como Natal e Halloween ou simplesmente atividades para manter os jogadores com algo novo para fazer enquanto as atualizações não chegam. O problema desse modelo é justamente o fato dele conter um item ou personagem limitado que pode ou não nunca mais voltar. Histórias, músicas e mecânicas de eventos são descartadas assim que eles acabam, podendo ou não serem recicladas. O que contesta isso é o timer informando quanto tempo resta até o fim daquele evento.

Acho que essa é uma das coisas que mais me incomoda em jogos gacha: essa necessidade de tudo ser para ontem, com eventos que basicamente dizem “não perca, é só por tempo limitado!” como a liquidação de uma loja de móveis que no fim você sabe que vai ter outra alguma hora. Dá pra dizer que isso é uma consequência do capitalismo e do consumismo exacerbado, mas iríamos entrar em outra vertente que não é a do texto. Na espera pela história principal que leva tempo e dinheiro, esses eventos servem como uma forma de manter o fluxo de jogadores. O problema é que, quando não há esses eventos, os gacha têm somente a mesma rotina diária de entrar, gastar energia e sair, quase como um trabalho. Ninguém é obrigado a fazer essa rotina diária, mas boa parte dos gachas recentes incentivam essa presença diária com recompensas a longo prazo, sistemas de passe de batalha, além de missões diárias e semanais.

Ou seja, você está basicamente trabalhando para o jogo. E pior, sem remuneração.

Grinding, Grinding e Mais Grinding

Se você foi criança ou pré adolescente nos Anos 2000, deve se lembrar que os MMORPGS foram uma febre inacreditável, além de serem o primeiro modelo de jogo como serviço a ficar popular. Nesses jogos, para avançar, o jogador precisa em algum momento aprimorar níveis e/ou habilidades para prosseguir, aumentando de forma artificial seu tempo no jogo. Isso sem contar as mecânicas feitas para atrasar seu progresso de propósito como missões que só podem ser feitas uma vez por dia ou modos de jogo que abrem somente uma vez na semana.

Sabe o mais engraçado? Boa parte dos jogos gacha possuem essas mesmas características. Pontos de farming que só aparecem em determinado dia, modos de jogo limitados a uma vez por dia ou semana e claro, o sistema mais comum dos jogos mobile, a energia que recarrega diariamente. Mesmo que a maioria dos gachas modernos não limitem sua jogatina com esse sistema, ele ainda é essencial para evoluir seus personagens.

E mesmo quando essa energia está disponível, o sistema cai em um grinding repetitivo onde você faz a mesma coisa de novo e de novo, vê as mesmas animações, os mesmos golpes, as mesmas falas, para obter recursos necessários para a evolução da sua waifu ou husbando. Muitos eventos inclusive são focados em fazer isso, por serem a melhor fonte de recursos e gemas pagas para rodar no gacha atrás do seu personagem favorito ou de um suporte poderoso.

Claro que a repetição em jogos, principalmente de RPG, não é novidade nenhuma. Os JRPGS são conhecidos pelo grinding de níveis, principalmente os mais antigos, a série Monster Hunter tem bastante ênfase no farm de materiais para criar armas e armaduras, os Metroidvanias às vezes também exigem um certo grinding para obter um item ou arma específico. A diferença é que, nos exemplos acima, apesar de chato, seu objetivo se concretiza alguma hora. Nos gachas é um loop de gameplay infinito, feito exclusivamente para aumentar a retenção de público.

O Caminho do $uce$$o

Eu sei, você sabe, todo mundo sabe como gachas ganham dinheiro. Originado das máquinas de gachapon do Japão, onde o usuário insere uma moeda e gira uma válvula para pegar um brinquedo dentro de uma cápsula, o sistema de monetização gacha sorteia aleatoriamente dez itens, divididos em raridade. Os de menor raridade vêm com maior frequência e os chamados Super Super Raros (SSR) têm uma taxa absurdamente baixa, incentivando os jogadores a rodarem mais até obter o SSR desejado. Em bom português: essa coisa é uma roleta, onde a sua sorte vai decidir se você ganha ou não. Soa familiar? Pois é.

Embora alguns jogos tentam remediar isso com sistemas que visam garantir o SSR ou aumentar as taxas, ser generoso demais (coisa que não existe nos negócios) vai na contramão do sistema, já que é dele que vem o lucro desses jogos. Afinal, não se faz milhões de dólares garantindo que o cliente ganhe sempre e mesmo que a pessoa tenha uma sorte gigantesca e pegue tudo o que quer, esses ainda são a minoria da base de jogadores.

Esse sistema se torna uma válvula de dinheiro e um gerador de receita extremamente eficiente, não é a toa que as empresas grandes como Konami, Sony e EA querem criar seu próprio JCS. Jogos estão cada vez mais caros de se produzir e os engravatados querem continuar ganhando muito dinheiro com essa indústria. Sim, indústria, onde o financeiro vem em primeiro e a arte fica em segundo plano.

O principal atrativo de jogos gacha são seus personagens e eles são feitos propositalmente atraentes para incentivar você a pagar por eles. Personalidade, design, história e aparência são os pontos de maior atrativo para os jogadores, e vamos ser bem sinceros aqui: alguns desses jogos criam narrativas bem interessantes, músicas de qualidade, visuais bonitos e personagens atraentes, mas que acaba servindo mais a um propósito comercial do que contar uma história. Ou seja, dá para dizer que aquele personagem que você se apaixonou por qualquer motivo está trancado atrás de um paywall que não tem um valor exato, que pode aumentar dependendo da sua sorte, diferente de um personagem de DLC de um jogo de luta onde você sabe exatamente o valor dele(a) e o pagamento é único, aqui você pode ou não gastar seu orçamento do mês naquele PNG ou modelo 3D.

É lógico que existe o gasto responsável nesse tipo de jogo, mas não são incomuns relatos de pessoas gastando altos valores toda vez que um novo personagem ou equipamento surge. Um jogador japonês de FGO chegou a gastar 70 mil dólares e boa parte das empresas são obrigadas por lei a informar as taxas de aparição dos SSR e os possíveis resultados, mesmo aqueles fora da taxa de drop. Apesar disso, não deixa de ser um tática bem predatória, tal qual as loot boxes e os boosts de experiência do nosso lado do globo.

Alimentando o FOMO

FOMO, sigla em inglês para “Fear Of Missing Out” (Medo de Ficar de Fora), têm sido um alvo de estudos em anos recentes. As tendências mudam cada vez mais rápido, ao ponto de que fica quase impossível acompanhar tudo ao mesmo tempo. Então, o FOMO surge nesse temor em não estar por dentro do assunto da vez: um jogo que lançou, uma série que tá todo mundo acompanhando ou um item de edição limitada cuja escassez programada cria um engajamento natural nas mídias sociais.

A maioria esmagadora dos jogos gacha possuem personagens limitados. Esses personagens voltam vez ou outra, mas sempre surge aquela urgência para tentar pegá-los, afinal, não dá para saber quando eles vão voltar. E claramente um jogador que não gasta ou investe muito pouco (os chamados “Free To Play” e “Dolphins” respectivamente), nunca terá moedas pagas o bastante para todos, diferente daqueles que despejam quantias altas, os chamados “whales”. As baixas taxas de obtenção de personagem, itens exclusivos para quem participou daquele evento, a rotatividade de personagens, tudo isso contribui para alimentar cada vez mais o FOMO da comunidade. Na minha experiência pessoal nenhuma empresa fez melhor uso de FOMO do que a miHoYo, especialmente em Genshin Impact onde os eventos de tempo limitado guardam informações importantes da lore do mundo e personagens que se perdem caso você não tenha jogado o evento. Esse foi um dos motivos de eu ter parado de jogar, inclusive.

Essa necessidade de estar ativo o tempo todo é resultado do modelo dos jogos como serviço, que querem a sua fidelidade e atenção. Quanto mais popular um JCS, maior é essa sensação de ficar de fora, de sentir que está perdendo alguma coisa incrível. Nem preciso dizer o quão nocivo é esse sentimento para a nossa saúde mental, em uma geração cada vez mais desgostosa com a vida. Por isso surgiu o movimento contrário ao FOMO, o JOMO, ou “Joy of Missing Out” (alegria em ficar de fora em português), que visa justamente buscar felicidade fora das tendências do momento. O JOMO busca a saída do ciclo de ficar refém das últimas tendências e aproveitar melhor as coisas no próprio tempo, sem ter que correr para terminar algo às pressas para poder participar de uma conversa que vai durar no máximo alguns meses até ser reposto pela próxima grande tendência.

O pensamento de CEOs de redes sociais onde todo mundo precisa seguir uma tendência ou não ficar de fora de um assunto condiciou nossas mentes a querer se sentir parte de algo que às vezes nem é do nosso interesse. Entender que temos nosso próprio tempo (alguém chama o Renato Russo aí) e que as coisas acontecem de forma diferente para cada um de nós é o primeiro passo para se livrar do FOMO. Em alguns casos, ficar de fora torna nossas experiências com nossos hobbies muito mais saudáveis e prazerosas.

Alternativas aos Gacha

Se você ainda quer jogar algo no seu celular mas não quer ficar refém dos gachas, existem algumas opções. A primeira seria um pouco mais difícil por envolver dinheiro, que seria comprar os chamados “jogos premium” da Playstore e App Store. Diferente dos jogos F2P, eles não possuem micro transações e é possível até achar alguns jogos Indie no meio, como Dead Cells e Stardew Valley. Apesar disso, existem alguns gacha que se vendem a um real e ainda assim possuem micro transações (tô de olho em você, Evertale!), então é bom dar uma olhada no game antes de gastar algum dinheiro. Sabia que Balatro, um dos indicados a Jogo do Ano, está disponível nos celulares? Pois é.

A outra alternativa — e a que eu segui — foi investir em emuladores. Hoje em dia os celulares estão bastante poderosos, então rodar jogos de portáteis como o 3DS e o PSP ficou ainda mais fácil. Embora a Nintendo seja bem rigorosa com suas propriedades intelectuais, existem muitos jogos de Super Nintendo e 3DS que não recebem o mesmo carinho que os clássicos, ficando perdidos e se tornando abandonware (termo em inglês que junta as palavras “abandon” e “software”, em resumo, software abandonado). Consoles de mesa como o PlayStation 2 e o Game Cube ainda recebem remasterizações e/ou remakes, então a emulação acaba servindo mais para vivenciar um título na sua versão original. Porém, eu recomendaria rodar esses consoles em um PC, já que além do tamanho dos jogos, os dispositivos móveis ainda podem encontrar dificuldades em emular esses consoles de mesa.

Tela do meu celular com os emuladores Citra, PPSSPP e My Boy!

A grande vantagem da emulação é poder ter acesso a alguns jogos mais antigos e completos com início, meio e fim. Eu nunca tive consoles da Nintendo, então a emulação acaba sendo uma ajuda para jogar alguns títulos que sempre me chamaram a atenção, mas não tinha como jogar antes. Meu PSP de 2011 parou de funcionar, então transferi os jogos baixados nele para o emulador, caso sinta a vontade de rejogar alguns. O PPSSPP possui suporte a controles, então torno a minha jogatina mais fácil em alguns títulos. E o mais importante, poder retomar exatamente de onde parei, sem campanhas de tempo limitado, sem recursos que só aparecem uma vez na semana, sem pressão para entrar todos os dias. Se eu quiser ficar meses sem jogar, não perderei nada, porque o progresso do game depende unicamente da minha ação.

Conclusão

Obrigado por ter lido até aqui, e esse provavelmente será o último texto do ano. 2024 até então foi um ano bastante intenso pra dizer o mínimo, então acabei ficando sem muito tempo para escrever aqui. Admito que não tinham muitas pautas interessantes para trazer aqui, então esse espaço ficou bem de lado. Eu investi bastante em projetos pessoais nesse ano, muitas mudanças aconteceram, mas no geral, o saldo se mostrou mais positivo do que negativo.

Gostaria de tirar um momento para agradecer a todos que permaneceram comigo nesse ano caótico. As piadas ruins, os desabafos, obrigado por me aguentarem por mais um ano. E que venham muitos outros!

Vejo vocês na próxima. Feliz fim de ano, Boas Festas e nos vemos no ano que vem. Fiquem bem, amigues.

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Written by Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.

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