“Naruto” Nunca Foi Sobre Trabalho Duro

Paladin Allvo
9 min readSep 19, 2024

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O mangá de Masashi Kishimoto inspirou uma geração a correr atrás de seus sonhos, mas a história nunca foi sobre isso.

Imagem mostrando as diferentes fases do personagem Naruto, bem como a evolução do traço de Masashi Kishimoto. Créditos: Mikeyuubi no YouTube.

Todo mundo que gosta de cultura pop japonesa tem um anime ou mangá tão importante para sua formação que, apesar dos pesares e com o passar do tempo, consegue continuar tendo o mesmo carinho depois de anos. O meu com certeza é Naruto, obra de Masashi Kishimoto sobre um rapaz de laranja que quer virar o Prefeito-Presidente-Ninja da sua aldeia.

Com mensagens sobre amizade, trabalho duro e superar o ódio, o mangá (e por consequência o anime) do Ninja de Laranja se tornou um clássico moderno e um dos maiores sucessos da Shounen Jump. Porém, a reta final da série causou uma enorme polêmica por conta de decisões no enredo bastante questionáveis como a vilã final ser uma Deusa Coelha do Espaço, algumas mortes controversas e a intervenção divina do Rikudou Sennin, o criador do Ninjutsu, para dar a Naruto e Sasuke poder o suficiente para enfrentar o Madara Uchiha e, por consequência, Kaguya Ootsusuki. Dentre essas decisões, a revelação de Naruto ser a reencarnação de Ashura, um dos filhos do Rikudou Sennin, criou a ideia de que “a mensagem de Naruto sobre trabalho duro foi anulada porque tudo estava predestinado a ele por uma profecia”. E tal qual a reputação de Bleach, essa concepção não poderia estar mais errada.

Você Molda o Seu Próprio Destino

Naruto logo após vencer Neji Hyuuga nas finais do Exame Chuunin.

Um dos argumentos favoritos da fandom de Naruto para dizer que o protagonista é um hipócrita é o fato de, na luta dele contra o Neji, o personagem afirmar que o destino não quer dizer nada e só você pode moldá-lo, quando na verdade, o Naruto estava predestinado a salvar o mundo.

Primeiro, o que o Naruto diz a Neji ainda está certo. Como uma encarnação de Ashura, Naruto não nasceu com o talento natural de Sasuke ou Neji, embora venha de um clã renomado como os dois. Os laços que ele criou, o esforço para alcançar seus sonhos, tudo isso moldou o jovem órfão em quem ele se tornou, o Hokage. Pela lógica, era pro Naruto falhar em fazer as pazes com Sasuke, assim como Ashura e Hashirama falharam com Indra e Madara.

O primeiro nunca conseguiu resolver o embate com seu irmão e o segundo, embora seja um dos ninjas mais poderosos da história e o criador do sistema de Vilas Ocultas Ninja, foi incapaz de convencer seu velho amigo a se juntar a ele, dando margem para o surgimento de Madara Uchiha como grande vilão.

Ambos se tornaram rivais e amigos, até que se viram como inimigos mortais a partir do momento em que Madara ameaçou destruir o sonho de Hashirama. Então, no fim, eles seguiram a sina de suas vidas passadas e repetiram o ódio entre eles conforme o destino ordenava.

Hashirama vence Madara e o leva a um estado de quase morte.

No caso de Naruto e Sasuke, ocorreu justamente o oposto: o protagonista forjou seu próprio caminho, jamais traindo sua palavra (tal qual ele disse várias vezes na série) e fez de tudo para trazer seu amigo de volta à luz. No fim, não só conseguiu resgatá-lo como superou o carma. Ainda salvou o mundo no processo, porém isso foi mais uma consequência do que o objetivo final.

O destino não queria que Naruto salvasse seu amigo, mas sim justamente o oposto: mesmo alcançando seu sonho, ele e Sasuke se enfrentariam e a próxima encarnação faria o mesmo. No entanto, Naruto desfiou o destino tal qual ele disse a Neji para fazer. Nunca houve nenhuma hipocrisia.

A Criança da Profecia Nunca Importou

O velho e o jovem Jiraya ao lado de seus discípulos Naruto e Nagato, na capa do Volume 48 do mangá.

Outro ponto muito debatido é a “A Criança da Profecia” que segundo a lenda, seria treinada por Jiraya e salvaria o mundo. A profecia em si sempre foi bem vaga e sem muitos detalhes, pois qualquer um treinado pelo Sábio Tarado poderia ser essa criança. O próprio Jiraya acreditava que era o Nagato por ele possuir o Rinnegan (antes desse poder ocular sofrer o PIOR retcon da história dos mangás) mas no fim o próprio Naruto parecia se encaixar dentro da profecia. A grande sacada sobre profecias é que elas nunca são o que parecem, e em Naruto não é diferente.

E sinceramente, as únicas coisas que tornam o Naruto de fato especial é ele ser do Clã Uzumaki, cuja linhagem sanguínea dá a ele uma resistência física absurda e ser o Jinchuuriki da Kyuubi/Kurama lhe deu uma reserva de chakra muito grande (contudo, isso o fez ser odiado por todos na vila por anos). Tirando isso, ser filho do Quarto Hokage não ajudou o Naruto em NADA, muito menos ser a reencarnação de Ashura, se você tira o segundo então, a história do mangá continua a mesma. O protagonista nunca esteve destinado a trabalhar duro para conseguir seus sonhos, criar vínculos com outros e até curar o ódio de sua Besta com Cauda. É injusto dizer que todas as ações dele foram guiadas pelo destino, afinal, se tem algo que a série nos mostra é que ações e palavras são capazes de mudar as pessoas para melhor. O esforço do Naruto foi o meio que ele encontrou para lidar com o talento natural de Sasuke, nunca o assunto principal da obra.

Dito isso, vamos aos dois tópicos que para mim são os temas centrais da história.

O Legado das Guerras

Madara, do Clã Uchiha, enfrenta Hashirama, do Clã Senju, durante a infância de ambos.

Um dos temas pertinentes do mangá é como a guerra gera legados de ódio e desconfiança entre as pessoas, mesmo em tempos de paz.

O mundo da série foi moldado através de inúmeras guerras através dos anos, iniciadas logo após a morte de Ashura e Indra, onde a filosofia do Ninshu se tornou a principal arma do mundo shinobi, o Ninjutsu. Na época de Madara e Hashirama, as vilas sequer existiam e inúmeros clãs lutavam entre si por domínio e poder, tal qual o Período Sengoku do Japão.

Após Hashirama Senju, líder do Clã Senju, um dos clãs mais poderosos, fundar a Vila Oculta da Folha em parceria com o Senhor Feudal do País do Fogo para evitar que mais crianças morressem no campo de batalha, as coisas deram uma acalmada, entretanto, não demorou muito para os conflitos retornarem, resultando em três Grandes Guerras Ninjas.

A geração de Naruto veio de um contexto pós Terceira Guerra, onde os Cinco Grandes Países e suas Vilas Ocultas estão em uma paz aparente, mas permanecem de olho umas nas outras. O Exame Chuunin é, na verdade, uma simulação para averiguar a força bélica das Vilas Ocultas caso uma nova guerra estourasse. Isso sem falar nos países e vilas menores, as maiores vítimas de todas essas lutas que se estendem desde os primórdios. Logicamente que o maior dos Cinco Grandes, o País do Fogo, não saiu de bonzinho nessa história. Kishimoto subverte a visão que a Vila da Folha é “paz e amor” e tal qual as grandes potências do mundo real, Konohagakure tem sua parcela de culpa no estado frágil onde o mundo da série se encontra. Não é a toa que a Vila foi atacada duas vezes devido a motivos políticos, sendo destruída na segunda.

Pain Tendou se prepara para destruir a Vila Oculta da Folha.

Se você fizer um paralelo com a própria história do Japão, essa abordagem escolhida pelo autor faz bastante sentido. Diferente do mundo real porém, o passado sombrio da Folha vem para assombrá-la e cobra seu preço na icônica destruição pelas mãos de Pain, uma vítima das ações bélicas da Folha. Moldado pela dor, tanto física quanto emocional, Nagato Uzumaki, o nome verdadeiro de Pain, é um lembrete vivo de como os grandes países às vezes se esquecem do enorme sofrimento que causaram a outras nações menores. A frágil paz daquela época foi construída através de desconfiança, tramoias e muito, mas muito, derramamento de sangue.

A Quarta e última Guerra Ninja vai justamente na direção oposta, onde os Grandes Países se unem para deter um inimigo em comum, algo que seria impensável anteriormente. A Aliança Shinobi pela primeira vez aproximou antigos inimigos e os atuais Cinco Kages, dos quais Naruto faz parte, têm o dever de manter a aliança e fazer com que os países cooperem entre si, alcançando um entendimento mútuo. O Exame Chuunin agora celebra a união da Aliança Shinobi ao invés de avaliar o valor das crianças como potenciais armas de seus países e governantes. Depois de anos de conflito, uma guerra enfim gerou um legado positivo para o mundo.

As Heranças (e Estigmas) das Gerações

Durante o Arco de Pain, aos olhos de Tsunade, Naruto emite a mesma sensação de olhar para Minato e Jiraya, demonstrando o amadurecimento do protagonista.

Dizem que a geração atual herda os problemas da antiga, os supera mas acaba criando os próprios problemas, que a próxima geração poderá ou não resolver. E essa ideia é reforçada constantemente na história.

Ao longo da jornada, Naruto e seus amigos encontram pessoas mais velhas e nesses momentos os conflitos geracionais ficam escancarados. Logo no começo da série temos Zabuza Momochi, que via seu parceiro, Haku, meramente como uma ferramenta, até o próprio Naruto confrontá-lo e perguntar se ele realmente nunca se importou com o jovem. O assassino pela primeira vez se permite chorar, afastando a máscara de insensível e lamentando a morte de seu amigo de forma sincera.

Zabuza, diferente de Naruto, esteve envolto em sangue e morte desde novo, por conta do terrível teste de admissão para Genin da Névoa. A Vila Oculta da Névoa tinha a alcunha de “Vila Oculta da Névoa Sangrenta” de tão violenta que a realidade do País da Água era.

Zabuza chora após ser comovido pelas palavras e lágrimas de Naruto.

Naruto sempre falou sobre como as gerações devem viver seus próprios dilemas e questões, enquanto aprendem o que a geração anterior tem de melhor a ensinar. Os mais velhos sempre possuem alguma sabedoria para partilhar com os mais novos, e os personagens com mais idade inspiram os novatos a serem diferentes deles.

Nada resume melhor esse sentimento do que o conceito da Vontade do Fogo, uma filosofia onde, apesar das diferenças, as pessoas da Vila da Folha carregam aquilo que há de melhor para frente. Os mais velhos do mangá sempre falam sobre a importância de confiar na próxima geração e como eles precisam ser melhores. Além disso, muitos se mostram dispostos a mudar de opinião após conversar com o Naruto ou outro personagem mais novo, reforçando o desejo deles de garantir um futuro melhor para os jovens e aqueles que ainda virão.

Embora hajam muitos embates entre as diferentes gerações, uma sempre pode aprender com a outra. Somos humanos, nossas sociedades jamais serão perfeitas e mesmo assim, ainda há algo positivo para se absorver de nossa convivência coletiva. Nenhuma pessoa é uma ilha, e nós vivemos sempre perto de outros. É através da união que a humanidade consegue mudar e prosperar. É graças a isso que chegamos tão longe.

“Onde as árvores dançam, uma de suas folhas encontrará uma chama. A sombra da chama iluminará a Vila e novas folhas crescerão…”

— Hiruzen Sarutobi, Naruto Vol. 16, capítulo 137.

“Mesmo com a mudança das eras, talvez a alma de um shinobi permaneça a mesma.”

— Naruto Uzumaki, Boruto: Naruto The Movie.

Conclusão

Olha só quem finalmente apareceu (sim, isso é uma autocrítica). Esse ano de 2024 tá uma verdadeira loucura então eu realmente não tive muitas oportunidades de escrever neste espaço.

Esse tema em específico era um rascunho inicial que estava no Medium há eras aqui, contudo, somente agora consegui elaborar bem sobre o que eu queria falar. Muita gente nos meios online só repete o que os outros dizem sem pensar ao invés de olhar a obra pelo o que ela é.

Logicamente que Naruto não é um mangá perfeito, mas achei justo vir dar meu pitaco nessa coisa do “Naruto ser um escolhido”. Eu reli os volumes do mangá mais vezes do que eu posso contar (sim eu era MUITO fissurado nesse negócio, cês num fazem ideia) então vários detalhes estão bem vivos na minha memória.

Vejo vocês na próxima! Fiquem bem.

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Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.