O Amadurecimento de God of War
Quando o novo jogo da franquia God of War foi apresentado na E3 2016, muito se via envolto em mistério. Kratos está vivo, mais velho e ele é pai novamente, de um menino que na época não teve seu nome revelado, posteriormente nomeado Atreus. A mitologia grega ficou para trás, a franquia rendeu-se ao enorme universo da mitologia escandinava e as músicas em grego deram lugar a canções escritas na língua nórdica (ou o máximo que o idioma islandês consegue reproduzir).
Minha história com GoW é parecida com a que muitos têm com Mario ou Pokémon. É aquela franquia que eu joguei a grande maioria dos seus jogos, zerei alguns diversas vezes e tenho quase toda a lore em minha cabeça. Gosto tanto ao ponto de ter pago sem medo algum uma boa grana em uma action figure só pelo fato de ter tanto Kratos quanto Atreus no pacote. Mas apesar de eu ser um fã declarado da série, devo reconhecer algumas falhas desta.
Um temor estava rodeando os fãs da série, comigo incluso: como reinventar uma fórmula de gameplay e história que já não estava mais funcionando, dado o fraco desempenho comercial de God of War Ascension?
A grande verdade é que a franquia de hack n’ slash conhecida pelo gore gratuito e apelo sexual estava envelhecendo mal e sendo deixada para trás. O porquê disso é fácil: todo mundo tem que amadurecer e até para o antigo Fantasma de Esparta, isso não é exceção. A série precisava se reinventar e deixar seu passado para trás, ou ia ser só mais um produto de seu tempo.
Se analisarmos o contexto em que God of War (2005) foi lançado dá para dizer como este reflete aquilo que a sociedade considerava—ou ainda considera — como “másculo”: O Kratos original era um homem de poucas palavras, que lutava sozinho e usava da brutalidade e violência extremas para vencer seus inimigos. Não havia técnica ou precisão, apenas siga em frente, mate todos os seus inimigos com as Lâminas do Caos e abuse de magias até todos morrerem e serem transformados em amontoados de orbes vermelhos. Kratos podia esquivar ou bloquear os golpes, mas era uma opção dada ao jogador atacar cegamente sem pensar duas vezes.
Para aquele contexto, Kratos era o homem ideal. Um guerreiro espartano, com feitos próximos aos de um deus (literalmente), motivado pela vingança contra o Deus da Guerra que dá nome ao jogo. Mas analisando seriamente, a grande verdade é que foi o próprio espartano quem causou infortúnio a sua vida. Foi sua sede de poder sem fim que o trouxe para a servidão dos deuses e tirou a vida de sua esposa e primeira filha(mesmo que Ares o tenha enganado).
Entregar a própria alma em troca da força absoluta foi um ato do próprio Kratos e é esse o grande paradoxo do personagem. Ele culpa Ares e posteriormente os deuses do Olimpo porém, nunca assume os próprios erros, postura típica daquilo que chamamos hoje de masculinidade tóxica. O homem em si nunca é o culpado, são sempre os outros os responsáveis pelo sofrimento causado por ele mesmo.
Outro problema era a falta de profundidade do Kratos iniciada em God of War II. A partir daqui, a pouca humanidade do personagem simplesmente deu lugar a um ódio injustificado e ele criou o hábito insuportável de se auto afirmar, demonstrado pelas frases ditas pelo espartano no começo do jogo, quando utiliza o Poseidon’s Rage; “nonsense you defy me!”, “I will make you suffer!” e “I am the God of War!”, além dele sempre se achar superior aos outros e nunca pedir ajuda.
Não bastasse essa mudança radical de personalidade, os atos brutais do Fantasma de Esparta pioraram em God of War III,por exemplo, aquela cena absolutamente desnecessária do deus Hélios tendo sua cabeça arrancada e pior, sendo usada como um item, recompensando assim o jogador e Kratos por sua agressividade. A transição do guerreiro em uma força vingativa só é justificada na prequel Ghost of Sparta, e apesar de ser canônico, ainda é um trabalho pararelo.
Nota-se que a Santa Monica Studio e o diretor Cory Balrog tinham um enorme desafio nas mãos, readaptar um personagem símbolo de uma década passada para um novo público, além de repensar toda a gameplay. E por sorte, eles foram bem sucedidos em ambos.
O começo de God of War (2018) já é incomum. Não há o rosto do personagem principal na tela de início e ele não parte para a batalha logo de imediato. Vemos um envelhecido Kratos amarrando bandagens tão gastas que elas estão encardidas e sujas de sangue, para esconder seu passado a todo custo. O seu primeiro ato como jogador é cortar uma árvore com a marca de uma mão. O combate agora exige que o jogador bloqueie e desvie com maior frequência e o obriga a planejar cada ataque.
Notamos que o antigo Fantasma de Esparta tem um relacionamento distante com seu filho e esse começo serve para estabelecer a relação entre os dois. Atreus não é uma criança que entrou no caminho do guerreiro e nem faz parte de uma trama de vingança. O rapazinho é o “filho do homem” e o espartano teme que a raiva o consuma assim como o consumiu. O diálogo não é expositivo e essa intenção fica nas entrelinhas.
Não obstante, a jornada desta vez é muito mais nobre e pessoal. Faye, a mãe de Atreus e esposa de Kratos faleceu e como último desejo, ela quer suas cinzas espalhadas no ponto mais alto de todos os Nove Reinos. Uma série de fatores faz com que o guerreiro julgue seu filho como inapto, mas a luta contra um homem estranho e invulnerável leva ao ponto de partida da trama.
Apesar dos pesares a história dos jogos antigos (com exceção do terceiro, que só fecha algumas pontas e no geral é extremamente rasa) era sim digna de elogios. Uma trama de vingança contra o ardiloso deus da guerra Ares, que levou Kratos a abrir a Caixa de Pandora para obter o poder necessário matar um deus, alcançando proporções épicas que levam a lutas contra deusese titãs. Contudo, em GoW III, vemos que no fim a vingança não trouxe nada além de destruição, morte e caos, algo admitido até pelo próprio espartano. A narrativa se permitiu crescer em GoW, dando desenvolvimento ao relacionamento de Kratos e Atreus, além de deixar o protagonista mais humano e profundo.
O “velho” Kratos tem algumas características da sua versão mais jovem. Ele continua reservado, mata seus inimigos com certa brutalidade e ainda odeia deuses. Porém, ao invés de matar os inimigos por estarem no seu caminho ou por simples crueldade, ele agora luta para sobreviver e proteger seu filho.
A idade trouxe a Kratos uma calma e controle maior de sua ira e hoje prefere manter distância dos deuses a enfrentá-los. E mesmo que discretamente, o habilitou a demostrar preocupação, aflição, luto pela morte de Faye e orgulho pelo seu filho. Uma das cenas mais marcantes para mim dessa mudança acontece em Alfheim. Após Atreus implicar que Kratos não se importa com a morte de sua mãe, o espartano diz:
“Veja como fala! Até o fim da jornada, alguém tem que manter o foco. Não confunda meu silêncio com indiferença. Tenha o seu luto. Me deixe com o meu.”
Essa fala já denota o quão Kratos sente a morte de Faye, o quanto ele a amou. Pela primeira vez, vemos o protagonista de God of War falando sobre seus sentimentos. Apesar de ter sim errado em ficar ausente nos primeiros anos da vida de Atreus, ele também o ama. Além de mais maduro, também tornou-se mais humano. E nada disso seria possível sem a presença do garoto na história.
No fim, a grande lição que God of War nos traz é que a maturidade e experiência nos tornam pessoas melhores. Não tem nada de errado em mudar de opinião, nem de rever seus velhos hábitos e mudá-los. Estamos mudando e evoluindo sempre, pois é para frente que as coisas andam. E pelo visto, Kratos e Atreus também aprenderam a seguir em frente.