O Delicioso Dungeon Meshi

Paladin Allvo
8 min readFeb 15, 2022

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O que acontece se você comer um monstro? Bom, com os devidos preparos, vira uma ótima refeição.

Um dos gêneros mais populares de histórias de fantasia com certeza é a fantasia medieval, também conhecida como “fantasia capa e espada”. Honestamente, como não amar? Cavaleiros portando espadas sagradas, magos com poderes arcanos fora de série, bravos guerreiros… é simplesmente fascinante. Mas a grande popularidade do gênero trouxe consigo um problema: a saturação da temática. Isso se deve a dois fatores: o primeiro é a quantidade de jogos e livros sobre o assunto e, no caso das mídias nipônicas, o excesso de animes isekai, onde o protagonista é um recluso patético, mas que ao morrer é transportado para um mundo de fantasia onde um Rei Demônio super malvado o espera, junto de um harém de waifus bonitinhas e tão rasas quanto um riacho. Já deu para perceber que não sou fã do estilo.

Então quando surgem histórias do gênero que saem um pouco disso e de quebra têm algo de especial, aí é que vale a pena e por sorte, Dungeon Meshi se encaixa nessa segunda categoria. Traduzido para “Delícias da Dungeon”—ou Delícias da Masmorra se você quiser ser mais específico—o mangá da autora Ryoko Kui é pertencente à demografia seinen publicado na revista Harta. A história segue o grupo dos quatro protagonistas Laius, Macille, Chilchack e Senshi atrás da irmã mais nova de Laius, Farlyn, que acabou devorada por um dragão. Para economizar recursos e dinheiro, eles decidem… comer os monstros da masmorra. No sentido mais literal possível. E o resultado? Um mangá muito gostoso (trocadilho totalmente intencional) de se ler.

Elementos Familiares, Porém Bem Aproveitados

Personagens de Dungeon Meshi separados por raça. Arte por Ryoko Kui.

Se você está familiarizado com histórias de fantasia medieval, já deve ter se acostumado com as raças comuns desse tipo de narrativa tais como elfos, anões, orcs, entre outros. E Dungeon Meshi usa esses mesmos elementos sem alterar suas bases, mantendo todas as características “clássicas”, vamos assim dizer. No entanto, o que torna o mundo do mangá muito imersivo é que os seres mágicos vivem de fato em uma sociedade, com regras e morais próprias. Não é um jogo de RPG com sistemas eletrônicos e artificiais que sequer fazem sentido—como níveis e status—mas sim uma aventura nos moldes tradicionais. E sinceramente, é um alívio poder ler um mangá com magos, cavaleiros e dragões sem estar abarrotado de mecânicas de videogame que em nada adicionam para a construção do mundo. Além disso, os diálogos sobre o mundo em si são de fato conversas, ao invés de um tutorial de game como se tornou o padrão do gênero nos animes e mangás.

E mesmo com elementos familiares, a autora consegue trabalhar com eles de forma criativa. A elfa principal poderia muito bem ser a arqueira de verde, mas a mangaká escolheu fazê-la uma maga(que usa azul inclusive). O anão do grupo prefere focar seus esforços em cozinhar e manter um ecossistema equilibrado ao invés de ser o típico “guerreiro burro” muito comum nas mesas de Dungeons & Dragons.

Usar elementos clássicos adicionando algo diferente na mistura sempre dá certo e torna a experiência agradável. Ninguém é obrigado a inovar ou fazer uma grande revolução—jamais alguém faz isso de caso pensado sinceramente—, porém com personagens carismáticos e um enredo interessante, qualquer narrativa consegue cativar a audiência desejada. Não é por menos que Dungeon Meshi é um sucesso de público e crítica, fora as diversas premiações onde a obra já foi indicada no Japão.

Personagens Cheios de Carisma

Toda aventura fantasiosa tem como núcleo o grupo principal. Como a história aborda a jornada deles, o ponto de vista é todo contado a partir da party, logo, será com eles quem o leitor/espectador/jogador mais vai se relacionar.

Dungeon Meshi nos apresenta quatro personagens principais: Laius é o humano cavaleiro do grupo, possui um interesse por monstros e conhecimento de como lidar com eles, além da curiosidade culinária. Marcille tem grande habilidade com magia e para ela, comer monstros é quase uma tortura (embora na maioria dos casos ache tudo uma delícia); Chilchack é um halfling ladino cético com os pés no chão, vivendo a vida de forma analítica. Por fim, Senshi é um anão que, apesar de lutar muito bem, é um cozinheiro primeiro e guerreiro depois, sendo o responsável pelas refeições inusitadas que dão título ao mangá. Os quatro funcionam muito bem juntos e todos são extremamente carismáticos.

As personalidades diferentes de cada um dos quatro torna a dinâmica dos capítulos muito divertida de acompanhar. Os exageros de Laius e Senshi combinados com o ceticismo de Chilchack e Marcille dão uma combinação perfeita, o que ajuda bastante na comédia. Contudo, a autora não os relega aos seus arquétipos e tira alguns capítulos do mangá para apresentar o passado deles, bem como desenvolver cada um. É nítida a diferença de atitude dos personagens dos primeiros capítulos para os mais recentes, até a ideia de fazer as refeições com os monstros de cada andar de tornou algo rotineiro para a equipe. Apesar de ainda em publicação, é notório como o mangá já deu um grande desenvolvimento aos protagonistas, e sempre há espaço para mais.

Porém não pense você que o foco vai todo para os principais. Outros personagens são apresentados ao longo dos capítulos e às vezes a história dedica um pouco de tempo de tela a eles. Desde antigos companheiros de Laius até uma segunda party são introduzidos na trama, com capítulos dedicados exclusivamente a eles. Tem espaço pra todo mundo, que nem coração de mãe.

Uma Construção de Mundo Incrível

Apesar de muitos dos elementos de Dungeon Meshi serem familiares ao público, o mundo onde a série se passa é bem construído e tem suas próprias regras. Desde a magia até a economia é bem explicado na história, deixando poucos furos no enredo, demonstrando a existência de um planejamento por parte da autora. Praticamente todo feitiço importante, cada criatura de destaque do arco, tudo é muito bem apresentado na história. Até mesmo a a masmorra se mostra muito mais do que apenas produto de um poderoso feiticeiro, é um ecossistema vivo e próspero tamanha a atenção aos detalhes produzidos pela autora.

Um dos tópicos que me surpreendeu foi o conceito da magia de ressurreição. No início eu não tinha gostado tanto da ideia, porém mais tarde é explicado que fora da dungeon, é um feitiço extremamente difícil pois a alma do falecido se desprende rapidamente no mundo exterior, fora casos onde o cadáver foi dissolvido ou cortado ao meio, tornando o processo ainda mais dificultoso. Senshi aponta isso como algo não natural, pois trazer um morto de volta é contra o ciclo natural da vida.

“Magia de ressurreição é o tipo de magia que eu mais odeio”, diz Senshi a Laius.

Ou seja, o ato de ressuscitar alguém exige uma série de requisitos, além de ser uma magia muito difícil de se executar fora da masmorra, pois é ela quem não permite as almas dos falecidos se desprenderem no momento do falecimento. Isso não tira o peso da morte, bem como demonstra que existem consequências caso o feitiço dê errado—segundo Marcille e alguns outros usuários de magia, sem um corpo completo ou algo para completar as partes faltantes do cadáver, é capaz da morte ser permanente.

É admirável como a mangaká dedicou tempo para detalhar o mundo onde a história se passa e em contos de fantasia, um mundo rico e bem apresentado faz toda a diferença. É muito fácil só colocar orcs e elfos numa narrativa desse tipo, difícil mesmo é trabalhar esses elementos de forma criativa, coisa que Dungeon Meshi faz muito bem.

Pratos de Dar Água na Boca

Quem disse que basiliscos são apenas monstros malignos? Eles dão uma ótima ave assada!

O que normalmente seria um elemento secundário na trama vira o grande destaque de Dungeon Meshi: a culinária. Com a apresentação de Senshi logo no primeiro capítulo, acompanhamos não somente a captura como também o preparo das refeições feitas a partir dos monstros. A ideia é similar à proposta da série de jogos Monster Hunter, mas ao invés de fazer armas e armaduras, os caçadores comem o que caçam.

E não somente acompanhamos a luta contra a criatura que será servida no jantar, como também vemos o processo de preparo da refeição. É como assistir a uma receita da Ana Maria Braga, mas você jamais vai conseguir replicar (a menos que você sabia onde arranjar carne de basilisco ou um cogumelo ambulante pra fazer um cozido). E como a autora já disse em seu artbook, quando não pode comer algo, ela desenha para ter um pouco de satisfação, então até mesmo uma torta feita de plantas comedoras de gente ou um churrasco de kelpie parecem extremamente saborosos. Durante minha leitura teve um momento onde a minha barriga roncou, de tão atrativas que são as refeições desenhadas pela mangaká.

A parte mais interessante disso tudo é como a culinária é o tema central, tal qual a força que leva a trama para frente. Até mesmo as partes mais tensas da trama acabam sempre em uma boa refeição e isso nem de longe deixa as coisas menos sérias. Matar as criaturas da masmorra não é apenas pelo prazer, é também para a sobrevivência do time e balanceamento do ecossistema local. Em resumo, até a matança de monstros e batalhas servem para um propósito bem mais amplo.

Limpando o Prato

Estamos de volta, finalmente! Perdão pela ausência, tive dificuldade em pensar em um tema bom para este espaço, além de estar ocupado com outras coisas, como o projeto de tradução de FGO, caçar um curso para a prova da OAB (e com certeza não tem nada ameu retorno ao Genshin Impact). Conheci esse mangá maravilhoso por volta de 2017, mas decidi reler desde o início esse ano e tinha esquecido como ele é bom. Espero de verdade que com a popularidade do mangá, anunciem um anime à altura, pois daria uma respirada na onda de isekais de fantasia que temos aos montes.

Vejo vocês na próxima! E fiquem bem.

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Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.