O Lado Ruim da Cultura Nerd

Paladin Allvo
10 min readMay 12, 2023

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Nem tudo é um mar de flores.

Se eu perguntar a você, leitor(a), o que significa ser nerd, qual seria a sua resposta? Provavelmente seria ou “pessoa que gosta de coisas da cultura 'geek' (livros, HQs, games, animes, dentre outros)” ou “alguém extremamente perito em um assunto por gosto”. E por incrível que pareça, ambas as definições estão corretas e são contemporâneas.

No Século XX, mais especificamente da década de 1960 até 1990 (e início dos Anos 2000 vai), o conceito de nerd era bem diferente. Retratados pelos filmes dos EUA como pessoas antissociais, com interesses muito específicos e resumidamente “fracassados”, era algo negativo ser considerado um CDF. O óculos, o aparelho que deixa a fala incompreensível e a camisa xadrez fazem parte do estereótipo clássico de nerd.

Com o passar dos anos porém, um evento muito curioso aconteceu: com o sucesso inesperado de um filme baseado em um super herói classe C dos quadrinhos e estrelado por um ator que estava com sua imagem desgastada devido ao uso de drogas, o primeiro longa do Homem de Ferro protagonizado por Robert Downey Jr foi a porta de entrada para o grande público para o que hoje chamamos de cultura geek e, de repente, tópicos como O Senhor dos Anéis, Harry Potter, Marvel e DC estavam mais difundidos do que nunca. Alguns anos atrás, até mesmo anime era um nicho extremamente específico, que se tornou muito maior graças a cultura da internet dos Anos 2000. Isso permitiu a entrada de produtos oficiais e maior acesso a mídias novas e antigas (o consumo de videogame nos Anos 1990 por exemplo, era muito diferente do que é hoje).

Com essas obras cada vez maiores, é esperado que um público mais abrangente que não se encaixa na tribo nerd/geek começasse a se interessar por essas histórias e personagens. Isso deveria ser algo positivo…certo? Certo?

O Clube do Bolinha Nerd

Capa da revista “Luluzinha: Meninos x Meninas”, publicada pela Pixel Media em 2013.

Você já ouviu falar na expressão “Clube do Bolinha”? Para explicá-la, é preciso um pouco de contexto. Para quem é mais novo (já estamos nesse nível? Caramba…), a Luluzinha foi uma série de histórias em quadrinhos bastante popular por aqui entre os anos de 1955 a 1996 e início dos Anos 2000. As histórias tinham como protagonista a menina de mesmo nome, que usava um vestido vermelho e vivia seu dia a dia de criança. Um dos personagens das histórias da Luluzinha é o Bolinha, um menino que tem um clube onde só entram meninos e meninas são absolutamente proibidas.

Quando alguém fala que fulano vive em um “Clube do Bolinha”, significa que aquele indivíduo só se relaciona com pessoas de ideias semelhantes, provavelmente todas do gênero masculino. E para alguns, o meio nerd delas é exatamente isso: todos dentro de um mesmo padrão, com as mesmas ideias e que se recusam a ouvir novas perspectivas. E como os nerds são em sua maioria homens, é comum uma grande rejeição a tudo que eles considerem diferente, mas isso obviamente não se aplica a todos.

Coisas como mudar a etnia de um personagem originalmente branco ou histórias que falem de temas mais inclusivos (sexualidade, igualdade de gênero, questões raciais, entre outros) tendem a ser vistos com maus olhos nessas comunidades mais “fechadas” por assim dizer. Existem sim exemplos ruins de obras que abordam esses assuntos como falaremos mais a frente, porém, quase qualquer coisa fora dos padrões automaticamente é rejeitada sem pensar duas vezes.

O que me deixa mais pasmo é o fato de ninguém desses grupos perceber que suas atitudes são praticamente as mesmas dos bullies: discriminar e perseguir algo ou alguém apenas por ser diferente. É lamentável pensar que o mesmo grupo que antes era discriminado faz a exata mesma coisa hoje.

A Questão da Diversidade

Imagem do jogo Marvel's Spider-Man: Miles Morales. O protagonista é um garoto negro e porto-riquenho.

Essa é uma questão extremamente delicada, logo, para não cairmos na leviandade, vamos por partes.

Primeiro de tudo, discussões sobre diversidade na mídia e, neste caso na cultura “geek”, não é uma concepção contemporânea. A título de exemplo, a Mulher-Maravilha foi criada no auge do movimento sufragista dos EUA da década de 1940, o Pantera Negra teve seu nome tirado de um partido político que lutava pelos direitos do povo negro nos Anos 60.

Com o passar dos anos, essa inclusão foi só aumentando e nos quadrinhos americanos passamos a ver mais personagens negros, latinos, asiáticos e um número maior de papéis femininos importantes. Ou seja, a cultura nerd sempre teve algum tipo de representatividade.

Com a expansão do público nerd fora do padrão anterior (homem e branco), a mídia cresceu junto. Agora que o cenário tinha cada vez mais presença de outras minorias, as empresas começaram a crescer o olho para esse público. Afinal, trazer um personagem considerado “diverso” é até hoje uma forma de trazer visibilidade (embora em alguns casos seja pelos motivos errados).

Isso quer dizer que toda representatividade é boa? Nem sempre. Por muitas vezes algumas empresas usam da representatividade somente como forma de vender mais e no fim, o/a personagem em si não tem qualquer relevância na história. Quando falamos de uma diversidade positiva, é quando o/a personagem não é focado(a) somente na característica que o/a torna uma minoria, mas sim faz parte de quem ele/ela é.

Rosa Diaz, personagem da série Brooklyn 99, interpretada por Stephanie Beatriz. Bissexual tanto na série quanto fora dela, a personagem de Stephanie é um ótimo exemplo de representatividade positiva.

O problema é quando toda e qualquer forma de mídia acaba sofrendo uma rejeição em massa apenas por isso (o famoso e infame termo “lacração”). Às vezes é uma história boa e tem personagens interessantes, mas é menosprezada por ser uma obra “lacradora” para os padrões nerds. Por exemplo, sinto isso quando vejo gente mais velha—tipo, muito mais velha—criticando Steven Universe pelo fato da série tratar de temas considerados “lacradores”. Isso quando não caem em cima do personagem principal, um garoto pacifista que detesta violência e usa cor de rosa, totalmente contra o padrão dos desenhos de ação e comédia estadunidenses.

Mas onde mais se vê reclamações de mudanças desse tipo são em obras consideradas “consagradas”. Às vezes a etnia ou gênero de um personagem é alterada na adaptação e isso gera uma fúria descomunal dos fãs. Um exemplo disso foi a atriz da Morte da série de Sandman da Netflix, que diferente da (possivelmente) asiática punk das HQs, foi interpretada por uma mulher negra. O que ninguém levou em conta é que, tirando a etnia da personagem, o visual dela é idêntico ao da HQ.

Isso quer dizer necessariamente que toda mudança é boa? Também não. Eu por exemplo detesto a mudança de Shun para Shaun na versão americana de Saint Seiya produzida pela Netflix. Apaga a ideia do Shun poder ser um herói mesmo que não seja dentro do padrão esperado de masculinidade (coisa que a Toei errou a mão na adaptação da obra, principalmente nos filmes e fillers, onde ele é extremamente dependente do Ikki). O personagem original trazia uma ideia muito bacana sobre Shun ser poderoso mas não utilizar todo o seu poder por detestar violência, para ser reduzido a “personagem feminina genérica do grupo”.

A Propagação de Ideologias Tóxicas

Hailey Bailey como Ariel em A Pequena Sereia (2023).

Que a internet sempre teve gente podre, estamos carecas de saber. Concentrados principalmente em fóruns obscuros da web, não é muito difícil achar gente torta por aí online: racismo, xenofobia, misoginia, LGBTfobia…às vezes tudo no mesmo prato. O problema é que, por algum motivo, alguém deu voz a essas pessoas e, agora, parece que elas têm aval para agirem dessa forma. Nem imagino o porquê (ironia.txt).

E obviamente que o meio nerd/geek não ia ficar de fora dessa galera completamente nociva. Uma coisa que andei notando (principalmente no “meio otaku”) é o ato da pessoa disfarçar preconceito como se fosse só um meme, conhecidos pela internet como “shitpost”. Pessoas que usam a lendária desculpa de “é só uma piada, tá se ofendendo por quê?”, quando na maior parte do tempo, é só uma máscara muito covarde para esconder o que realmente se quer dizer.

Nos últimos anos o meio nerd/geek ficou infestado dessas pragas, criando o estigma de que toda pessoa que consome esse tipo de coisa é um antissocial insuportável de se conviver. Apesar de ser verdade em alguns casos, nem sempre é assim. Embora hajam casos onde até discursos de cunho fascista (!) sejam reproduzidos por algumas pessoas, existe gente saudável que curte animes, games, HQs e afins. O problema é que cada vez mais a figura do “nerdola” se torna um problema persistente e irritante de se lidar. E por conta de uma minoria que fala mais do que o resto, todo mundo sai perdendo nessa história.

A Problematização e a Banalização de Questões Sérias

Lembra daquela inclusão maior que eu falei lá atrás? Então, não é como se ela tivesse sido um processo bonito. A ascensão das redes sociais abriu o debate para muitas coisas e, logo, as pessoas se tornaram cada vez mais engajadas nas suas ideologias, pontos de vista e claro, política.

Apesar disso ter trazido à luz debates sobre desigualdade, preconceito e afins, também trouxe o que eu gosto de chamar de “tuiteiro” ou “problematizador”, aquela clássica pessoa que vê problema em tudo e acham que o posicionamento é uma questão séria. Em alguns casos, a pessoa ainda diz uma asneira completamente afastada da realidade, que parece ter boas intenções mas no fim é um absurdo completamente inaplicável. É quase como presenciar uma realidade paralela, sabe?

Esse é um exemplo clássico de asneira dita com supostas "boas intenções", típico da problematização. Segregar o convívio de meninos com mulheres até seus 30 anos não vai ensiná-los a respeitá-las.

Os problematizadores acham que TODA e QUALQUER coisa é tópico para debates “super relevantes”, quando na verdade isso traz o efeito oposto: acaba por banalizar tópicos de importância para a sociedade, que normalmente são trazidos pela super interpretação das coisas. Ao enxergar problema onde não tem, muito do discurso banal abafa quem realmente quer discutir assuntos sérios com maturidade. Racismo não é falar que a empresa do joguinho de fada é racista porque os personagens pardos são fracos, mas sim um preto entrar em um estabelecimento e ser recebido com olhares desconfiados, é a violência dos policiais brancos, é ver filhos e casais inter-raciais como algo exótico. Nem se compara com tom de pele de personagem de joguinho.

Todo Mundo Sai Perdendo

Se você for uma pessoa astuta, já deve ter percebido que o tema principal desse texto é o extremismo. A internet tornou tudo tão polarizado e divisivo que as pessoas perderam a noção do meio termo. Ama alguma coisa? Ame ao extremo, odeia algo? Odeie com toda a intensidade, e claro, escolha apenas um lado e se recuse a ouvir o outro (para atitudes criminosas e nocivas, esse último não se aplica).

No fim, é prejudicial para todo mundo: o cara preso no passado que chama tudo que é diferente de “lacração” e a pessoa que vê problema em tudo o que consome criam um estresse desnecessário.

Ao invés de discutir sobre Marvel ou DC, que tal apreciar as duas com suas qualidades e defeitos? Sabia que dá pra gostar do PlayStation e perceber que o Game Pass é serviço muito melhor que a PS Plus? E a parte mais importante: que tal criar as suas próprias opiniões ao invés de se guiar pelo o que todo mundo diz?

Pode parecer loucura mas você pode gostar de algo que todo mundo acha ruim! Eu mesmo zerei e platinei Final Fantasy XV, um jogo extremamente conturbado no lançamento recheado de problemas (a animação de correr dos personagens é esquisitíssima, o combate é muito caótico e a câmera se perde com facilidade, a história tem um ritmo muito estranho, entre outros) e mesmo assim eu tive uma boa experiência com o jogo, apesar de ter jogado a Royal Edition é claro.

Obviamente que discutir é natural da natureza humana. A gente gosta de falar e compartilhar as coisas que amamos com outras pessoas, e acho discussões sobre temas importantes como representatividade super válidas. A questão é quando a discussão sai do controle e vira uma briga de Lado A versus Lado B, onde um extremo tenta invalidar o outro. Isso quando o tema da vez não dá margem a ataques ou preconceitos velados. Todos podemos e devemos discutir de forma saudável, se é que isso existe nos ambientes virtuais.

Conclusão

Mangá: Wotakoi-Love is Hard for Otaku

Espero que vocês tenham gostado do texto e que meu ponto tenha ficado claro. Ultimamente eu queria voltar a escrever nesse espaço mas estava sem ideias sobre o que falar até me deparar com o rascunho desse texto aqui e ele já estava uns 90% pronto (e particularmente é um tema muito bom), logo seria um desperdício deixar ele mofando aqui.

A título de curiosidade, o título desse texto mudou umas três vezes porque o foco do texto foi mudando ao longo da produção dele. Além disso, o Medium bugou e não me deixava acessar o rascunho pra editar. Parece até teoria da conspiração…

Vejo vocês na próxima! E fiquem bem.

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Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.