O Legado Inestimável de Akira Toriyama

Paladin Allvo
12 min readMar 12, 2024

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Um dos artistas mais influentes do Século XX, o Mestre Toriyama nos deixou no dia 01/03/2024.

Dragon Ball, Dr. Slump, Dragon Quest, Chrono Trigger. Você com certeza já teve contato com o trabalho de Akira Toriyama, desenhista e escritor japonês mais conhecido por ter dado vida às aventuras de Goku e seus amigos. Apesar de hoje a cultura de anime e mangá estar devidamente estabelecida, Dragon Ball sempre foi especial. Sua mãe provavelmente sabe quem é o Goku (isso se ela mesma não foi ou é otaku) e até quem não é do meio de anime e mangá acaba familiarizado com a obra do Toriyama em algum nível.

Tentar falar sobre o legado de Akira Toriyama é uma tarefa árdua. O impacto de seu trabalho é muito maior do que DB, apesar de ser a obra mais famosa. Inspirando inúmeras gerações ao longo dos anos, a morte do Mestre Toriyama, tal qual a de Kentaro Miura, me afetou profundamente. Então, decidi aceitar essa tarefa difícil em homenagem ao grande artista que nos deixou esse ano.

Um Breve Histórico

Akira Toriyama nasceu em Aichi, no ano de 1955. Ele costumava desenhar para seus colegas de classe no ensino fundamental e até participou de alguns concursos de desenho. Crescendo cercado pela obra do Ozamu Tezuka e, pasmem, Walt Disney, seu interesse pelo desenho veio por conta do anime Astro Boy do Deus do Mangá. Apesar disso, sua carreira inicial não foi de mangaká, mas sim de designer, trabalhando com propaganda e lettering.

Somente aos 23 anos é que decidiu começar a investir na carreira de mangaká, enviando trabalhos para concursos de novos mangás, principalmente da Weekly Shounen Jump. Apesar de alguns fracassos aqui e ali, ele recebeu um “feedback” de Kazuhito Toshima, CEO da Editora Shueisha na época, dizendo que seu trabalho tinha um enorme potencial (e tinha mesmo).

Somente em 1980 ele emplacou seu primeiro mangá: Dr. Slump, uma comédia que tinha como protagonista Arale, uma robô criada pelo cientista Senbei Norimaki que vivia aventuras na Vila Pinguim. O sucesso foi tanto que em 1981, apenas um ano após sua estreia, o famoso estúdio Toei Animation adaptou o mangá em anime, o que ajudou a deixar o até então jovem Toriyama em evidência. A versão em quadrinhos durou de 1980 a 1984, se encerrando em seu décimo oitavo volume.

Foto mais recente de Akira Toriyama, tirada em 2017.

Após o fim de Dr. Slump, Akira produziu um one shot chamado Dragon Boy, sobre um menino com asas de dragão que precisa proteger uma princesa em perigo. Com inúmeras inspirações na cultura e folclore chinês, esse one shot foi a base inicial para o que hoje conhecemos como Dragon Ball.

No início, as aventuras de Goku tinham uma grande inspiração em A Jornada ao Oeste, clássico da literatura chinesa que narra a jornada espiritual do rei macaco Sun Wukong (cujo nome lê-se “Son Goku” nos caracteres japoneses) em busca de redenção. Como bem sabemos, Dragon Ball tomou forma própria, se distanciando de sua origem inicial.

O que começou com um simples mangá de aventura e fantasia com toques de comédia e filmes de artes marciais (especialmente os de Jackie Chan, que o Toriyama era tão fã ao ponto de homenagear o ator em DB) se tornou uma das maiores franquias multimídia da história. Em 1986, também trabalhou como character design para o primeiro Dragon Quest, e assim o fez até o último título da série, Dragon Quest XI: Echoes of An Elusive Age. Sua relação com o mundo dos games se estendeu a outros trabalhos, como Chrono Trigger, Blue Dragon e Tobai n° 1.

Seu último trabalho antes da sua trágica morte foi Sand Land, um projeto de paixão de Toriyama que provavelmente seria um trabalho multimídia, contando com mangá, anime e jogo, este último finalizado e já anunciado para as plataformas atuais.

Um Estilo de Arte Único

Arte do jogo Chrono Trigger, da Akira Toriyama Exhibition.

O estilo de arte de Toriyama é inconfundível, daqueles onde você bate o olho e reconhece logo de cara. O traço mais cartunesco, vindo das influências de Tezuka, Disney e provavelmente de outros autores da década de 60/70, é algo que se manteve ao longo dos anos, mesmo com as mudanças de traço naturais de todo desenhista.

Outra coisa fascinante do Toriyama era a representação das máquinas e animais fantasiosos em sua arte. Não é incomum ver os personagens de Dr. Slump e Dragon Ball montando em dragões, criaturas fofas e máquinas extremamente detalhadas, tudo com muito zelo e capricho. Ele também tinha um grande fascínio por carros e naves, veículos que ele desenhava com bastante frequência nas artes de capa em seus mangás.

Arte de capa japonesa de Dragon Quest I, lançado para o NES em 1986.

Os designs de fantasia do mestre também são fáceis de se identificar. Capas, panos, túnicas, tiaras, armaduras, capacetes com chifres e claro, os icônicos slimes de Dragon Quest, que não só se tornaram os mascotes da série como também uma referência para o visual dessas criaturas ao longo das décadas em outros jogos de RPG. Embora fossem inspirados na fantasia de capa e espada europeia, é inegável que DQ tem uma identidade própria que o distingue de outros JRPG do mercado, uma marca difícil de alcançar.

Mundos Fantásticos e Fascinantes

Mapa do mundo de Dragon Ball durante os eventos da chamada "fase clássica".

Uma coisa que sempre me fascinou em Dragon Ball (obra que tive mais contato) é o seu mundo com magia, tecnologia, alienígenas e deuses convivendo em harmonia. E essa é uma das características do Toriyama: a capacidade de te investir em um mundo totalmente único que só ele sabia fazer. Dá para dizer que a construção de mundo de One Piece tem bastante inspiração na forma que o Mestre Akira fazia, porém com o toque único do Eichiro Oda.

Em uma terra onde há dinossauros, demônios mágicos e uma raça guerreira alienígena, tudo consegue conviver em plena harmonia, permitindo uma expansão natural desse universo (teve até multiverso nessa brincadeira!). E isso somente em Dragon Ball, é visível ver esse mesmo contraste com itens mágicos e máquinas poderosas coexistindo em Dragon Quest e Chrono Trigger (especialmente CT cuja temática principal é a viagem no tempo). A forma como o artista conseguia fazer tantos elementos diferentes conversarem entre si organicamente é uma habilidade admirável, algo que muitos quadrinhos como os da DC e Marvel por exemplo mostram dificuldade em fazer.

Um Mestre do Character Design

Arte de capa japonesa de Chrono Trigger, lançado originalmente para o Super Famicom/Nintendo.

Dizem que um bom character design é aquele cuja silhueta é reconhecível de imediato. Se esse regra for verdade, então o Toriyama era um dos melhores do ramo, pois é impossível mostrar um personagem do autor e não saber imediatamente quem é. Os cabelos de Goku e Chrono, o boné e óculos da Arale, a armadura do Jaco (sim, ele era de um mangá próprio que se passa no mesmo universo de DB até ser apresentado em Renascimento de F), todos eles possuem características marcantes que os definem muito bem. O próprio uniforme laranja e azul do Goku serviu de inspiração para Naruto Uzumaki e Toriko, protagonista do mangá de mesmo nome.

Um Humor Afiado

Apesar de infames, as piadinhas de Dragon Ball fazem parte essencial do início do mangá.

Embora seja permeado de momentos sérios e icônicos, Dragon Ball e até outros trabalhos do Toriyama são marcados por um senso de humor sem igual. O que não deveria surpreender ninguém, já que o próprio Dr. Slump é uma comédia e esse tom humorístico foi levado para Dragon Ball. Apesar da segunda parte do mangá ser mais séria, a veia humorística volta, apesar de tímida, na Saga Majin Buu e permeada em Dragon Ball Super. Afinal, um Deus da Destruição super poderoso brigar por causa de um pudim é a coisa mais Toriyama possível, e falo isso de forma positiva. Mesmo com o tom épico de batalhas sangrentas até a morte e poderes letais, a obra de Akira nunca foi super séria, só ver a lógica dos nomes que o autor dava para seus personagens. Os Saiyajins? Todos têm nomes de verduras e legumes, pois “saiya” é um anagrama para “yasai”, vegetal. As terríveis Forças Especiais Ginyu? Nomeados a partir de laticínios, que se guardam na geladeira….ou no “freezer”, em inglês. Em Jaco, o Patrulheiro Galático, existe uma piada recorrente do protagonista de mesmo nome somente se alimentar de queijo e leite, e para agradá-lo, basta oferecer ambos. Outra piada, quase um bordão, é a obsessão da Arale com cocô, mais especialmente um cocozinho cor de rosa que…aparentemente é um personagem (preciso ler o mangá pra entender esse contexto maluco KEK).

Goku e Arale já se encontraram duas vezes em crossovers especiais. O primeiro foi durante a fase clássica do mangá e o segundo ocorreu em um episódio especial de Dragon Ball Super, como na imagem acima. Em ambas as vezes, o humor esteve presente com força.

Obviamente que no contexto atual, as piadinhas sexuais de Dragon Ball serão vistas com maus olhos , no entanto, é necessário fazer uma leitura levando em consideração a época onde o mangá foi produzido. É uma crítica anacrônica (ainda mais considerando a maluquice que foram os Anos 1980), pois com o tempo já na fase clássica, o foco acabou virando outro. As reações exageradas à inocência do Goku acabaram ficando mais frequentes do que as calcinhas e personagens tarados, uma troca que sinceramente fez bastante sentido. E podemos tirar como lição disso jamais ter medo de fazer nossa própria arte. Ninguém vira tendência ou revoluciona o cenário artístico por querer, e usar uma temática recorrente nem sempre significa mediocridade. Dungeon Meshi, mangá que já abordei nesse espaço, usa a temática de fantasia medieval como pano de fundo para uma aventura recheada de comédia, ação e bastante culinária fantasiosa, além do próprio DB se inspirar na Jornada ao Oeste e nos filmes de ação do Jackie Chan. Seja feliz com sua própria criação, porque se você não gostar do seu trabalho, ninguém vai.

Uma Influência e Referência a Inúmeras Gerações

Se você gosta de mangás como Naruto, Bleach, Hunter x Hunter, One Piece e afins, é graças ao trabalho do Mestre Toriyama. A influência de Dragon Ball e suas mensagens sobre “buscar sempre melhorar, pois sempre haverá alguém mais forte do que você” e “superar seus limites em situações difíceis” serviu de inspiração para muitos mangakás, especialmente aqueles que fizeram sucesso ao longo das Décadas de 90 e 2000. Dá para dizer que, assim como JoJo, Dragon Ball deixou um impacto tão grande na indústria que ele ditou as tendências para as próximas décadas após a dele, sejam usando recursos narrativos similares como a “transformação obtida através da fúria pela perda de um amigo/ente querido” (que eu gosto de chamar carinhosamente de “Complexo de Super Saiyajin”) e o “protagonista meio burro mas de bom coração e cheio de determinação”, bem como o “rival totalmente oposto ao personagem principal” e até na parte visual como um todo.

Enquanto os mangás da mesma época de DB passavam por uma transição de um estilo menos cartunesco para um mais realista, as obras de Toriyama foram na direção oposta e investiram na estilização, algo que se tornou a marca registrada do artista e aclamada pelos colegas de profissão e por vários artistas ao redor do mundo. Com a notícia triste da morte de Akira, li vários relatos de artistas brasileiros e estrangeiros comentando como a obra dele os inspirou a trabalhar com ilustração ou os levou a gostar da arte do desenho como um todo. Acho que essa é a parte mais incrível da obra do Akira como um todo: seja pelos mangás ou pelo trabalho do artista nos videogames, todo mundo acaba influenciado/inspirado pelo trabalho de uma única pessoa, que durante anos, contribuiu de forma significativa para diversas formas de arte, não só o mangá. O subtítulo desse texto não é um exagero: eu realmente acredito que, dadas as devidas proporções, Akira Toriyama é um dos maiores artistas do Século XX e uma verdadeira lenda com um legado inestimável.

Minha História com Akira Toriyama (Especificamente, com Dragon Ball)

Minha cópia de Dragon Ball Volume 1. Tal qual Naruto, tenho a coleção completa com todos os 42 volumes.

Eu sempre acompanhei Dragon Ball a uma certa distância quando era criança. Eu conhecia boa parte da história da segunda metade e sempre gostei do personagens, especialmente Piccolo e os Saiyajins no geral (sempre gostei do Gohan por algum motivo quando era moleque), mas nunca tinha visto a história por completo. Até tentei assistir ao Dragon Ball Kai, mas não fui para frente com a ideia por estar desacostumado com a dublagem japonesa (e também pelo fato de sentir que faltava algum contexto para entender aquele começo da Saga Saiyajin). Então, folheando as páginas de um mangá chamado Dorothea e o Martelo das Bruxas, descobri na Checklist da Panini que a publicação de Dragon Ball tinha começado e eu implorei para o meu pai que, se ele achasse, trouxesse o Volume 1 para mim. Foi então que, em um dia chuvoso de meados de 2012, eu me deparei com o primeiro volume de DB em uma banca de jornal. Foi um negócio tão bizarro que eu consegui ver o mangá do banco do ônibus (!) que vinha da casa de minha avó materna. Pareceu até coisa do destino.

Essa imagem do Goku criança em cima do dragão mexe comigo até hoje.

Ler Dragon Ball aconteceu em uma época engraçada para mim. Acompanhei Naruto por anos, é uma das obras mais importantes da minha vida e a publicação de Dragon Ball veio justamente um pouco antes do fim de Naruto, o que ajudou muito a preencher o vazio deixado pelo Ninja de Laranja, uma história que acompanhei desde 2007. Foi lendo as aventuras de Goku e seus amigos que vi a genialidade de Akira Toriyama enquanto escritor e principalmente, desenhista. Uma das coisas que amo nesse mangá é a quadrinização, pois ler qualquer mangá do Toriyama é um deleite dada a forma como ele conseguia distribuir os quadros ao longo da página. Os ângulos de câmera e o dinamismo das cenas são fruto da mentalidade de que “menos é mais”, pois as obras do Akira nunca tiveram quadros demais nas páginas, tornado o folhear delas extremamente agradável e prazeroso.

Sei que assim como tudo na vida, não é uma história perfeita sem erros (a Saga Buu é um caos completo e a troca constante dos antagonistas da Saga dos Androides deu uma desgastada no arco) mas ainda assim, Dragon Ball ganhou um lugar especial no meu coração junto com Naruto, Berserk e One Piece como um dos mangás mais importantes da minha vida. O primeiro filme que assisti sozinho no cinema foi justamente o Renascimento de F, eu acompanhei o lançamento semanal do Super (sim, inclusive na época onde a animação tava precária) e vibrei com todos no cinema assistindo a luta final entre Gogeta Blue e Broly em 2019.

Provavelmente é a série que mais tenho merchandising (tenho boneco, camiseta, button e talvez pegue uma camisa laranja do Goku) de tanto que gosto desse mangá. A criatividade sem limites do Toriyama, o mundo fantástico com deuses, robôs e magia, os personagens sensacionais e emblemáticos, tudo me fez amar Dragon Ball ainda mais. Algo que começou como um amor platônico virou uma paixão pessoal, que permanece comigo mesmo depois de adulto.

Por isso, tudo o que tenho a dizer é: obrigado Mestre Toriyama. Obrigado pelo seu legado inestimável para a arte como um todo, obrigado por ter escrito Dragon Ball, o mangá que foi meu companheiro de leitura mensal depois que Naruto acabou. Obrigado por permanecer simples em sua essência e jamais tentar mudar na escrita, design de personagem e principalmente pelo seu humor afiadíssimo, tão característico da sua obra. E principalmente, obrigado por me inspirar a ser feliz criando a minha própria arte, sem medo de ser julgado.

Descanse em paz, mestre. Que você seja recebido nos céus com toda a glória que lhe é devida.

“Lute bem, estude bem, coma bem, descanse bem, e viva a vida ao máximo! Esse é o caminho do Estilo Kame!”

AKIRA TORIYAMA
1955-2024

Conclusão

Espero que vocês tenham gostado, demorei um pouco mais para escrever esse texto dado o tamanho do legado do artista. Acho que essa é uma das perdas mais inestimáveis que tivemos recentemente, pois o mangaká era uma influência e referência que atravessou gerações.

Devo lhes confessar que o ano já começou com uma tragédia pessoal para mim, pois perdi um amigo da época do Ensino Médio e agora a morte do Toriyama veio assim que eu já tinha me recuperado da primeira. Sei que ainda estou aqui e que viver e seguir em frente é necessário, mas, a sensação que tive quando soube da morte do Tio Akira foi a de ter perdido mais um amigo de longa data. Por isso, jamais conseguiria me perdoar se não prestasse essa homenagem.

Nos vemos na próxima vez. Até lá, fiquem bem.

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Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.