Precisamos Parar de Endeusar Mídias

Paladin Allvo
9 min readAug 10, 2022

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“Shit taste” é o cacete, amigo.

No meio do entretenimento, existem aqueles casos de obras que se destacam, e as que se tornam clássicos. Eu poderia numerar aqui diversos nomes mas vocês, caros leitores, já devem ter alguns em suas mentes. E os clássicos merecem ter esse título por diversas razões: influência, inovação, dentre outros fatores que os tornaram relevantes ao longo dos anos, transformando-os em referências futuras. Ou às vezes eles se tornam destaques que os fazem serem aclamados pela crítica e público.

Esse conceito de “clássico” vale para diversas mídias de entretenimento. Filmes, quadrinhos, animes, séries e até novelas podem se tornar clássicos dependendo das circunstâncias de seu lançamento. O problema é que às vezes surgem algumas poucas pessoas na internet que, ao dizerem que não gostam destas ditas mídias, são julgadas e a coisa toda se torna uma caça às bruxas. Às vezes, o apreço por algumas coisas, qualquer seja a mídia, chega a níveis tão altos que parece uma espécie de culto religioso fanático (ou pior, um antro de elitistas que se acham detentores daquilo que é “realmente bom”). Afinal, quem ousaria dizer um “a” de algo que é super popular e amado, não é mesmo? Só que entretenimento é sobre experiência, e experiência é algo muito particular.

A Experiência de Cada Um

A filosofia nos ensina que uma das formas de aquisição do conhecimento é através das experiências do mundo ao nosso redor, o chamado empirismo. Se ampliarmos um pouco nossos horizontes, poderemos perceber que isso vale até para coisas simples como assistir um filme ou ler um livro. Por muitas vezes, o primeiro contato de uma pessoa com um tipo específico de gênero de filme ou animação vai acabar criando uma preferência por algo similar. Me usando de exemplo, sempre gostei do tema da idade média por conta de alguns filmes e animações que assisti na infância (daí também surgiu meu interesse pela lenda do Rei Arthur, uma vez que a maioria desses filmes tinham essa temática), e ao ter maior contato com jogos de RPG single player e vários MMORPG, surgiu em mim um apreço muito grande por fantasia medieval. Então a maioria das coisas que eu gosto seguem a mesma lógica: cavaleiros de armadura, magos com poderes mágicos e afins. Por outro lado, histórias com a temática de Velho Oeste pra mim sempre foram um completo tédio desde criança, bem como a história dos EUA num geral.

Assim como eu não sou muito fã de faroeste, tem outros por aí que não gostam de fantasia medieval (conheço gente que odeia RPG japonês, por exemplo). E direi algo para caso você se identifique com o exemplo anterior: tá tudo bem não gostar. Não, sério. Pode parecer um completo absurdo dizer isso em tempos tão polarizados, mas ninguém nunca vai gostar das mesmas coisas que você o tempo todo. E nada é absolutamente bom ou ruim, existe o mediano e tudo bem gostar do mediano. Você não é menos ou mais fã porque uma coisa não atinge os tais “níveis de excelência” determinados por uma minoria que fala muito alto. Inclusive, falando nela…

O Elitismo do Entretenimento

“Então, ele disse que gostava de Fairy Tail e achava uma boa história. Dá para acreditar na falta de bom gosto da plebe?” (E sim, é assim que eu imagino um elitista de internet.)

Um dos termos que mais se espalhou pela internet nos últimos anos foi a palavra “elitismo”. Parece bem óbvio o conceito a princípio, mas acho que vale um pouco de contexto para os que não estejam muito familiarizados com a ideia. O elitismo é, em suma, a prática de fortalecimento de uma minoria considerada a elite da sociedade (obrigado pela força, Google). Era bem comum na idade moderna, o período situado entre 1453 e 1789, a existência de famílias ricas e influentes realizando eventos exclusivos da alta sociedade, bem como havia todo um código de etiqueta, vestes e cultura. Qualquer integrante dessa dita “alta sociedade” tinha uma obrigação de manter o prestígio da família e seu legado. Para isso, os integrantes eram obrigados a aprender e gostar de coisas consideradas “refinadas e chiques”. Um exemplo clássico disso são os bailes de debutantes que, por algum motivo bizarro, se mantiveram na tradição brasileira através das festas de quinze anos, muito desejadas por algumas jovens meninas, afinal, esta era a idade onde as moças da elite eram “apresentadas” à sociedade. Fãs de Bridgerton já devem estar familiarizados com este cenário.

Apesar do espaço de duzentos e trinta e três anos desde o fim da Idade Moderna até o ano de 2022 na data deste texto, traços da cultura elitista permanecem na nossa sociedade. Todos nós queremos do bom e do melhor — e não tem nada de errado nisso, de forma alguma — então somos levados a acreditar que existem coisas “refinadas” e que só elas prestam, porque as massas não sabem apreciar o que é arte. O problema dessa visão é que, além de toda a herança histórica negativa (eu nem preciso dizer o quão discriminatório é o elitismo, certo?), um pequeno grupo de pessoas não é capaz de falar por todos. Sim, devemos entender a importância dos clássicos e suas influências, afinal sem as grandes obras metade das coisas que gostamos nem existiriam, porém, isso não significa que você vai acabar gostando daquela mídia só por seu valor histórico. Não é preciso jogar necessariamente o primeiro Final Fantasy de NES para curtir JRPG. Opção é o que não falta no mercado, com jogabilidade e histórias dos mais variados tipos. Nem sempre você precisa recorrer ao original se a adaptação é boa o bastante também. Claro, na obra original a intenção e estilo do autor ficam mais nítidos, mas às vezes uma adaptação bem executada basta. Outro problema do elitismo é que apenas o gosto e opiniões daquele grupo de pessoas são considerados válidos. Limitar qualidade só pela sua ótica não só é uma presunção a níveis astronômicos, como uma completa e inegável estupidez. Sem falar na arrogância, quem é você na fila do pão para dar palpite no que o amiguinho gosta ou deixa de gostar? O Papa?

Uma prática que eu considero bastante negativa é a de dizer que alguém que não gosta/concorda com você tem “mau gosto” ou “shit taste” como é chamado na gringa. Gosto é uma coisa extremamente pessoal, então taxar a opinião alheia de mau gosto porque você não considera aquilo bom é só denotar uma postura arrogante e desnecessária. Isso é muito comum em comunidades de anime, e admito que quando mais novo, já tive essa postura. Afinal, ninguém quer ficar de fora do grupinho do recreio, não é mesmo?

Para finalizar esse tópico e seguirmos para o próximo, é bom deixarmos claro a diferença entre elitismo e senso crítico. Desenvolver um senso crítico é sim essencial, afinal, é uma forma de expressar suas opiniões de forma mais concisa do que apenas “ah eu não gosto/só gosto e pronto”. Não só para entretenimento, como também para todos os outros aspectos da vida, saber ter senso crítico lhe permite ser seletivo e saber quais situações lhe são agradáveis ou não, além de que ser só mais um seguindo apenas o que os outros dizem não faz bem para a sua saúde mental, tampouco auxilia a construção da sua própria identidade. O problema é quando esse mesmo senso crítico é usado para discriminar, apontar e julgar outro apenas por ter uma opinião divergente da sua. Não é assim que o mundo funciona.

A (In)Capacidade de Se Discutir Online

Desde que o ser humano criou a escrita e aprimorou sua capacidade de fala, debates e discussões se tornaram parte da vida em sociedade. Sejam elas pautas importantes como combate ao racismo, medidas para salvar o meio ambiente ou até coisas simples como “o que você achou do filme novo da Marvel?” se tornam terreno de debates e discussões acaloradas.

Com a ascensão das redes sociais, essas discussões se tornaram cada vez maiores e frequentes, pois o ambiente virtual tornou possível a expressão de todo tipo de voz. A questão é que, apesar das redes possibilitarem trazer a luz temáticas antes vistas como tabu, por outro gerou um dos efeitos mais prejudiciais dos últimos tempos, a polarização. Polarização pode ser definida como a prática de definir dois lados extremos e se agarrar a apenas um de deles sem a possibilidade de existir um meio-termo. Isso é um problema primeiro porque é praticamente uma obrigação social escolher apenas um lado — e ai de você se gostar do outro — limitando o campo de visão; segundo, não importa qual for o lado “escolhido”, SEMPRE haverão extremismos. Mesmo dentro da bolha utópica onde todo mundo concorda com tudo, sempre vai surgir alguma discordância.

O fenômeno da polarização impossibilitou o debate saudável porque nenhum dos dois lados está disposto a ouvir e mudar de opinião, pois criou-se a mentalidade de nunca questionar aquilo em que se acredita. Como um debate é uma troca de ideias onde um lado escuta o outro, nos ambientes online a coisa ou acaba numa briga de egos ou em agressão. Isso e o fato de que, para algumas pessoas, querer estar certo sempre é mais importante do que ter um convívio social saudável. Bater o pé e insistir na sua visão como a única aceitável é mais fácil do que se permitir mudar de opinião, afinal um dos maiores defeitos do ser humano é a dificuldade de reconhecer que talvez esteja errado ou mudar completamente de paradigma de vez em quando pode ajudar. Isso não quer dizer para desistir da sua posição logo na primeira discordância, mas há casos onde é melhor encerrar a discussão ou simplesmente ouvir o que o outro tem a dizer. Em casos assim, pare para pensar: é melhor acabar com um debate inútil que não leva a nada ou continuar com o bate boca apenas para provar um ponto?

Quando falamos de polarização, os dois extremos acabam sendo o povo que odeia tudo e todos relacionados àquele tema em específico ou os admiradores que colocam tudo em um pedestal, como se fosse uma espécie de religião fanática. Nem preciso dizer que nenhuma dessas duas visões é saudável, certo?

A Perfeição Não Existe — E Tá Tudo Bem

Eu poderia dizer que escolhi essa foto porque normalmente associamos a boneca Barbie à perfeição, mas a verdade é que eu fiquei sem ideia de imagem pra ilustrar esse tópico.

Pode se dizer que com o passar dos anos, o público ficou cada vez mais exigente com os novos lançamentos. Isso ocorre por diversos fatores como a “cultura do hype”, altas expectativas, entre outros. Existem casos onde a qualidade ou falta dela em alguma mídia é consenso geral (como foi o caso do desastroso “Morbius”), porém existem casos de extremos curiosos: um onde algo é ovacionado até dizer chega e o outro onde uma obra é escrachada também até dizer chega e no fim das contas é só uma história mediana com alguns defeitos aqui e ali, mas completamente inofensiva.

No caso da primeira hipótese, existem situações onde a mídia em si é posta em um pedestal como se fosse uma divindade absoluta, sem quaisquer defeitos ou imperfeições. E como já dito acima, ai de você se disser que não gosta, pois uma inquisição virtual se inicia tentando provar o quão equivocado é não gostar do que todo mundo gosta. Para isso eu só digo duas coisas: primeiro, se você faz esse tipo de coisa, você é insuportável. Segundo, obras de entretenimento são feitas por pessoas, e por mais que tenhamos qualidades, sempre vai ter um defeito ou outro que vai desagradar alguém. É inevitável. Eu adoro Berserk, mas entendo quem se distancia do mangá pelo conteúdo sexual da obra, que por vezes soa meio gratuito demais ou, no meu caso, Red Dead Redemption pode ser a obra de arte que for, detesto faroeste americano e não vou dar mais de duzentos reais em algo que claramente não vou curtir.

Precisamos nos desapegar dessa ótica de colocar tudo que gostamos em um altar e reverenciar como se fosse uma divindade. É claro que vamos falar com carinho daquilo que gostamos, mas para algumas pessoas é quase um ataque pessoal uma opinião contrária, e em casos extremos, beira ao fanatismo. Nossa busca incessante pela perfeição ajuda muito nessa concepção — especialmente na adolescência onde ainda estamos estabelecendo nossa identidade — contudo, mostra-se cada vez mais necessário o exercício mental para nos policiar e entender que perfeição não existe, e no fim do dia, é mais viável tentar dar o seu melhor sempre.

Conclusão

Espero que vocês tenham gostado. A ideia desse texto veio de um pensamento que já tenho faz tempo, e acho que consegui expressar bem o que quero dizer. Ultimamente, ando tendo certa dificuldade de achar temas interessante para se discutir aqui, mas espero que quando surgir uma ideia, eu possa transcrevê-la neste espaço.

Sobre o texto de Fairy Tail que prometi no Twitter há alguns meses…acho que desistirei da ideia. Não tenho muito a dizer, apenas foi uma ótima experiência já que eu não sabia nada da história além do hate desnecessário e me peguei surpreso com vários momentos bons. Quem sabe um dia.

Vejo vocês na próxima! E fiquem bem.

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Paladin Allvo

Brasileiro fã de anime, mangá, joguinho e quadrinhos. Escrevo as coisas que penso e/ou vivencio.