Um Tributo A Berserk E Ao Legado de Kentaro Miura
O legado de um artista é uma das coisas mais preciosas que ele/ela pode deixar. O realismo preciso de DaVinci, a peculiaridade de Dali, o estilo único de Picasso. Todos eles tinham visões de mundo muito peculiares e características.
Kentaro Miura não era diferente. Autor de Berserk, o mangá foi responsável pela popularização do subgênero de “fantasia sombria" ou Dark Fantasy, histórias ambientadas em um cenário cruel e desolador onde forças além do homem atormentam e dificultam sua jornada na existência. A história, que tem Guts como protagonista, nos mostra um homem destinado ao fracasso e luta constantemente contra o destino que lhe foi atribuído.
Às uma da manhã do dia 20 de Maio de 2021, horário Brasília, foi notificado a morte do autor no dia 06 de Maio deste ano. Além de uma obra incrível, um legado inestimável, Miura deixa para trás família e amigos do meio dos mangás, que lamentam, junto aos fãs do mundo todo, uma perda tão dolorosa.
Minha história com Berserk data de minha adolescência. Eu li o mangá em um tablet e a cada leitura, eu ficava intrigado em tamanha qualidade e mesmo hoje, é uma daquelas coisas que continuam boas mesmo depois da puberdade. Junto com Naruto, foi a obra que me fez amar ler mangá, e apreciar esta forma de arte. E hoje, ao invés apenas lamentar pela perda—mais do que já lamentei—eu gostaria de apontar, na minha opinião, quais são os grandes destaques desta história.
Beleza Nos Mínimos Detalhes
A primeira coisa que salta aos olhos é a arte de Kentaro. Fazendo uso de hachuras (uma técnica de desenho que consiste em fazer várias linhas), o traço do artista ganhava um ar mais realista do que a maioria dos mangás. Cada objeto, cada arma, cada armadura tinham texturas muito próximas da realidade. Você consegue ver claramente a diferença entre couro e metal no trabalho de Miura, o trabalho mecânico absurdo no braço artificial de Guts, e até os cabelos tinham uma atenção aos detalhes.
Nos últimos capítulos antes de sua morte, percebe-se que o traço de Miura atingiu seu ápice, com cenários ainda mais detalhados e repletos de elementos, cada quadro de duas páginas é uma obra de arte para olhar e se admirar. É uma daquelas ocasiões onde na versão digital a arte já é bela, mas impressa se torna ainda mais.
Kentaro Miura era um mangaká como nenhum outro, e com tantos detalhes, era de se esperar que o autor preferiria tirar hiatos para trabalhar na arte e história. Embora alguns engraçadinhos fizessem piadas acerca do tópico, é inegável a forma de como o trabalho dele resume muito bem a sensação de “a espera valeu a pena”. Sensação esta que nenhum outro mangá além de One Piece e Naruto me trouxeram. E talvez nunca mais traga.
Um Mundo Cruel e Cheio de Dor
Um dos aspectos mais marcantes de Berserk era a forma como Kentaro Miura nos apresentava a miséria e crueldade humana em um mundo afundado em sofrimento e violência. A própria história do nascimento de Guts é cercada em tragédia, pois o protagonista nascera em meio aos cadáveres de outras pessoas, inclusive de sua mãe, que não viveu o bastante para ver seu filho. Não obstante, a infância do guerreiro ainda foi marcada por uma mãe adotiva louca e um episódio de violência sexual. Para aqueles alheios ao trabalho do autor, isto pode parecer um clássico caso de “violência pela violência” quando, na verdade, é um elemento essencial para a narrativa do mangá e o desenvolvimento de Guts. O mundo pode ser um lugar horrível, e quando não se tem amparo, é pior ainda.
Todos os momentos de violência são usados para ação e para reforçar o quão cruel é aquele mundo. Não é incomum encontrar cenas de batalhas entre monstros e também humanos, especialmente no arco de flashback “Golden Age". É um mundo hostil e cruel com os mais fracos, onde apenas a força e a lábia resistem e a humanidade está em uma situação degradante.
Porém, mesmo em um mundo deprimente como esse, ainda existem pequenos momentos de paz e esperança. O amor entre Guts e Caska é natural e flui bem até o derradeiro eclipse. O Bando do Falcão parece mais uma família, sentimento esse somente resgatado mais para frente, com a introdução de Schierke. Mesmo em tais situações, havia sempre espaço para uma piadinha ou outra graças a Puck, o responsável pelo papel de alívio cômico, servindo também como personagem mascote. Não era incomum o elfo fazer alguma referência a outro mangá e até Star Wars. São essas pequenas tiradas de humor que não só deixam a leitura um pouco mais leve, como também servem para deixar o clima da história mais fácil de se digerir.
Os momentos de paz e tranquilidade revelam-se com o novo grupo de Guts. Schierke, Farsene, Isidoro e Serpico ajudam a resgatar o lado humano e bom de Guts, mostrando-nos, assim, que todos nós precisamos de outras pessoas para viver e que ninguém consegue fazer tudo sozinho. São os laços com outras pessoas que nos tornam capazes de recomeçar e nos lembrar de como devemos ser gratos por termos outros que se importam conosco.
A Profundidade dos Personagens
Um dos pontos essenciais de qualquer história, além da trama e temática, são seus personagens. Sem personagens carismáticos e cativantes, nenhuma narrativa se sustenta. E nesse ponto, Kentaro Miura acertou em cheio.
A começar por Guts, o protagonista. Ele poderia ser mais um dos inúmeros personagens principais “machões” influenciados por Kenshiro de Hokuto no Ken, mas ao longo da história, vemos que na verdade, existe muita dor e sofrimento na vida dele desde muito novo. As coisas vivenciadas pelo Espadachim Negro fariam qualquer um desistir, porém, apesar de todas as adversidades e um destino cruel tentarem derrubá-lo, ele sempre se levantava. A maré de azar na vida do personagem trouxe muitos traumas e dificuldades—a perda de um braço, a destruição da sanidade da mulher que ama, as mortes do colegas de exército—porém, mesmo após tantas experiências horríveis, Guts nunca parou de avançar. Um lembrete da melhor parte da humanidade, a força para nunca desisitir.
Griffith para mim, é um dos, senão o melhor vilão já escrito em um mangá. Não só a dualidade entre ele e Guts causa um contraste de antagonismo—mais pela oposição do que pela vilania—como o mangá sempre fez questão de mostrar a distância entre os dois.
Enquanto um literalmente veio da lama e permaneceu lá, o outro nunca se contentou com pouco e fez toda sua vida girar em torno de uma única ambição, nem que para isso, ele precisasse fazer cruéis sacrifícios em prol de seu sucesso pessoal. Griffith não é um vilão terrível apenas pela frieza de sacrificar todos por interesse próprio, mas sim, por expôr o pior lado da natureza humana. Passar por cima de tudo e de todos unicamente para atingir seus objetivos é o que torna este personagem tão temível e odiável, porque existem pessoas na vida real que fariam o mesmo. Exemplos não faltam na história da humanidade.
Porém, não devemos fazer esta análise de forma maniqueísta. Guts sempre foi um refém de sua fúria e por vezes, se envolveu em batalhas sangrentas, por vezes aparentava certo prazer nisso. Apesar de sua ambição fosse criar um país, Griffith o fez em cima de incontáveis sacrifícios e derramamento de sangue, sem considerar as consequências.
O grupo que passa a acompanhar Guts após os eventos do arco Millenium Falcon também são de grande destaque. Farnese e Serpico saíram de seu contexto fanático religioso e a primeira até se dispõe a usar magia, pois sente grande empatia por Caska e desejar ajudá-la a restaurar sua sanidade. Isidro tinha tudo para ser um azarado qualquer, porém sua aparente imprudência é também sua maior qualidade.
Schierke começa sua jornada insegura e sem saber muito o que fazer, e com o passar do tempo, torna-se uma das bases da equipe. Um grupo de personagens completamente distintos uns dos outros, que acabaram se juntando pelas consequências é o que faz toda história de fantasia um clássico. Com tantos personagens interessantíssimos repletos de arcos muito bem apresentados, é inegável como a obra se afastou do caminho fácil da “violência e sexo” de muitos mangás seinen e nos mostrou profundidade e humanidade, fugindo da típica história de ação ultra violenta para adultos, nos presenteando com momentos marcantes e inesquecíveis com estes personagens.
Além de Qualquer Final
Infelizmente, Kentaro Miura não conseguiu terminar a sua obra máxima em vida. Por conta da falha em seu coração, a história não teve seu “final definitivo”. Mas sinceramente? Não é necessário. Surgiu uma onda de “insatisfação” por uma parcela de pessoas na internet indignados com a falta de um encerramento, ignorando completamente o fato de termos perdido mais uma grande mente neste ano de perdas tão difíceis. Muitas famílias viram seus entes queridos partirem por conta de uma doença terrível, o Brasil ficou de luto pela morte de Paulo Gustavo e o mundo viu uma das maiores mentes do mangá—que é uma arte muito antes de ser uma indústria—o deixar.
Em um mundo desamparado, é que vemos o real valor das coisas que temos e devemos valorizá-las enquanto ainda estão aqui. Eu fiquei desolado por conta da morte de Kentaro Miura por admirá-lo enquanto artista e pensei em como a família dele deve ter sofrido para manter essa angústia oculta por tanto tempo do público. E sobre Berserk ter ou não um final, honestamente, pouco importa. O mangá conseguiu criar ao longo de trinta anos um público fiel, um grande prestígio e gerou uma enorme onda de influência na mídia japonesa e internacional. Sem a obra, obras como Final Fantasy VII, Dark Souls, dentre outros inúmeros títulos sequer existiriam e Miura conseguiu deixar seu legado no mundo da arte e do entretenimento. Seja pelo traço lindo, pelos personagens cativantes e humanos ou pela temática sombria do mundo que consagrou a história, os fãs e principalmente aqueles que conviveram com o mangaká de perto jamais deixarão essa história morrer. E isso é melhor e maior do que qualquer final da história. E mesmo se houver um anúncio de finalização, não será a mesma coisa sem a pessoa responsável por tornar essa história realidade.
Últimas Palavras
E com esse texto, eu me despeço de Berserk e da maior obra de Kentaro Miura. Eu fiquei extremamente triste com a notícia, porque a obra dele foi uma das minhas bases e inspirações para a escrita, a responsável pelo meu interesse em Dark Fantasy e por me fazer perceber o quão incrível é a arte de se fazer mangá. Dizer adeus a um artista tão genial e tão dedicado mostrou-se difícil demais pra mim e fará uma falta imensa. Espero que com o falecimento do autor, as pessoas passem a enxergar as dificuldades da profissão de mangaká, e que nem sempre um hiato é “sinal de preguiça”.
Mangakás nem sempre são ricos e mesmo depois da fama, nunca param de trabalhar, seja desenhando e fazendo a história, ou só uma dessas coisas. Muitos lançam um grande sucesso e param por aí, porque a rotina de um artista é dura e nunca é fácil. Infelizmente, ou a história acaba na hora certa, ou o autor nunca consegue terminar de forma digna, é um trabalho às vezes bem ingrato.
Apesar de toda tristeza, Berserk e Miura conseguiram alcançar um status de grande influência e respeito para além do nicho de anime e mangá. É pelo amor que tenho a essa obra, por todos os bons momentos que eu digo estas palavras:
Obrigado, Kentaro Miura. Obrigado por me fazer amar ainda mais fantasia medieval, obrigado por todos os momentos proporcionados, pelos personagens incríveis e pela sua arte maravilhosa. Seu legado permanece comigo e com diversos outros fãs e admiradores ao redor do mundo.
Descanse em Paz.
E a todos vocês, obrigado por terem lido até aqui. Nos vemos na próxima vez.